O despacho musical do Gangrena Gasosa continua forte

Por Júlio Black

04/04/2018 às 07h02 - Atualizada 04/04/2018 às 07h41

Oi, gente.

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O rock feito no Rio de Janeiro nos anos 90 é mais lembrado por Los Hermanos, Planet Hemp, mas era nas profundezas abissais – e bota abissais nisso – de palcos como o extinto Garage que emergiam nomes que levavam o termo “alternativo” às últimas consequências. Quer exemplos? Piu-Piu e Sua Banda tinha um vocalista que comia sabonetes, se vestia com peixes mortos (séculos-luz antes do “vestido de carne” de Lady Gaga), colocava fogo no próprio corpo e bebia urina no palco, muitas vezes acompanhado por prostitutas, enquanto cantava clássicos como “Vila Mimosa”, “Animal, animais”, “Andando de ônibus”. Ou o Zumbi do Mato, com as clássicas “O Alien que veio pro espaço”, “Buraco do Jabor”, “O Espírito do Rato” e “Potinho de Anhanha”, numa mistura de erudição com nonsense, palavrões e trocadilhos infames moldados por jazz, reggae, punk, música erudita e o mais puro barulho.

E havia – aliás, ainda há – a Gangrena Gasosa, primeira e única banda de saravá metal do mundo, quiçá do sistema solar, da galáxia e do universo, que lançou no primeiro dia de 2018 o seu quarto álbum, o como sempre inclassificável “Gente ruim só manda lembrança pra quem não presta” (ô, nome bonito), sucessor de “Se Deus é 10, Satanás é 666” (ô, nome igualmente bonito). Em pouco mais de 32 minutos, o trabalho apresenta dez faixas em que o clássico metal mantém o improvável casamento (forçado, diriam os headbangers mais reacionários, e isso é coisa que não falta) com as batidas dos pontos de umbanda (ou macumba, candomblé, como cada um quiser definir) e até abre espaço para o repente nordestino.

A atual formação, como a própria banda afirma em sua página no Facebook, é a mais estável dos quase 30 anos de carreira: Angelo Arede (Zé Pelintra, vocal); Eder Santana (Omulu, vocal); Minoru Murakami (Exu Caveira, guitarra); Diego Padilha (Tranca-Rua, baixo); Gê (Pomba Gira, percussão); e Renzo Borges (Exu Mirim, bateria). Musicalmente, as guitarras do metal seguem acompanhadas pela percussão da umbanda e fazem a alegria dos fãs em “Gente ruim”, “Trabalho pra 20 comer” (“Eu vou pedir ao Pai-de-Santo / Pra você me esquecer / Consertar a burrada que eu fiz / Que foi pedir um trabalho pra 20 comer”), “Farda Preta de Caveira”, “Encosto”, “O Saci” (“Cavalga em noite de luar / Trança a crina do cavalo / Pra poder se agarrar / Faz o bicho disparar / Sugando seu sangue / Até o danado minguar”) e… Na verdade, em todas as músicas dá pra sentir o bicho (seria o Coisa Ruim?) pegando.

As letras vão do cara viciado em drogas à tiração de sarro com os veganos e a crítica ao povo que só sabe cuidar da vida alheia, mas tem muita alma penada, trabalho mal feito (“Salário reduzido e o pagamento atrasou / Na saída do banco um mendigo te roubou / Deve a todo mundo, braços dados com a miséria / Enxaqueca todo dia e ainda pega gonorreia / Encosto! Encosto!”), despacho, santo, assombração, Exu (“Exu ri mas fala sério / Pra demanda se quebrar / Quando vem do cemitério / Traz feitiço do lado de lá”) e todo o festival de bizarrices que podem parecer irreais, mas que têm lá um fundinho de verdade para quem já ouviu “A Patrulha da Cidade” ou lia o jornal “O Povo”. Ou sabe que o mundo é um lugar muito estranho, e que precisamos mantê-lo assim.

E de onde veio o Gangrena Gasosa? O grupo foi criado em 1990 com um objetivo bem específico: abrir um show do Ratos de Porão. Para não ser o mais do mesmo, decidiram misturar o peso do metal com temas ligados à macumba, criando um black metal made in Brazil que, ao invés de Satã e companhia, cultuava pretos velhos, Zé Pilintra, Exus e pombas giras em shows com seus integrantes vestidos como a representação dessas figuras – e muito despacho e farofa pelo palco.

O primeiro disco, “Welcome to terreiro”, veio em 1993 pela Rock It!, gravadora que Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) havia criado. A percussão dos pontos de umbanda ainda eram sampleados, mas dali saíram clássicos como “Pegue santo or die”, “Despacho from hell” e a faixa-título. O segundo álbum, “Smells like a tenda spirita” (2000), já com um percussionista na banda, trazia “Benzer até morrer” (versão para “Beber até morrer”, dos Ratos de Porão), “Terreiro do desmanche” e “Centro do Pica-Pau Amarelo”. Daí se passou quase uma eternidade até “Se Deus é 10, Satanás é 666”, de 2011, que além da temática “macumbanger” trouxe clássicos como a música que batiza o disco, “Minha sinceridade é humanitária”, “Quem gosta de Iron Maiden também gosta de KLB” e a hilária “Eu não entendi Matrix”, (talvez) a melhor música de rock feita no Brasil em todos os tempos.

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Se não tiver medo de benzer até morrer, Gangrena Gasosa é o trabalho firme e garantido pro seu terreiro musical.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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