Juiz de Fora tem seis casos diários de violência contra mulher

Em cinco anos, Casa da Mulher atendeu a quase 12 mil casos no município. Números vêm aumentando diante de maior segurança das vítimas para fazer a denúncia, mas ainda há subnotificações


Por Marcos Araújo

27/03/2018 às 07h00- Atualizada 27/03/2018 às 07h46

Onze mil, novecentas e setenta e cinco histórias diferentes, envolvendo violência, sofrimento, desamor e frustração foram denunciadas à Casa da Mulher, nos últimos cinco anos. São estas vítimas que, no limiar entre o medo e a vontade de dar um basta, ergueram a voz e denunciaram a violência doméstica a qual eram submetidas. O total de atendimentos na Casa da Mulher mostra que, a cada dia, pelo menos, seis mulheres são vítimas de atos violentos, na maioria das vezes, dentro da própria casa. Os números que tentam traduzir essa realidade, em Juiz de Fora, não apontam para um quadro favorável, já que sempre há que se levar em conta os casos subnotificados, abafados pelo temor de novas agressões. A Polícia Militar registrou, em 2017, o aumento de 6,5% de agressões contra vítimas femininas. Foram 1.852 casos contra 1.738 em 2016. As tentativas de homicídio contra as mulheres também apresentaram alta de 52%. De 21 registros em 2016, as ocorrências alcançaram 32 crimes no ano seguinte. Já os homicídios consumados, no levantamento da PM, mantiveram-se no mesmo patamar. Nos dois anos analisados, foram 16 mortes em cada um.

Entre as causas para o grande número de atendimentos na Casa da Mulher, possivelmente, está a própria criação do espaço, em 2013, que passou a servir de referência para as vítimas, incentivando que mais casos viessem à tona. Já no que diz respeito aos números da Polícia Militar, o recrudescimento tem relação com motivações passionais, relacionamento entre vizinhos e disputa de heranças, em primeira instância. Em seguida, aparecem os crimes que têm o tráfico de drogas como pano de fundo.

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Voltada para atender as ocorrências previstas na Lei Maria da Penha, a Casa da Mulher é o destino de mulheres como G., de 32 anos, mãe de dois filhos. O primeiro com 12 anos e o caçula com 8. Depois de um relacionamento com o pai dos meninos que durou 13 anos, envolto em agressões e ameaças de morte, ela se viu na obrigação de denunciá-lo, no último dia 13. Na data anterior, para não ser espancada publicamente, na porta de uma escola, G. se trancou dentro de seu carro. O ex-marido, enfurecido, por não conseguir agredi-la passou a chutar o veículo, danificando-o. Da Casa da Mulher, ela saiu com um pedido de instauração de medida protetiva e com representações contra o ex-marido por danos patrimoniais e de ameaça de morte.

Essa não foi a primeira denúncia de G. Há cinco anos, ela fez um registro de Maria da Penha por agressão física contra o então marido, porque não aceitava mais apanhar a base de socos e pontapés. “Realizei exame de corpo de delito e consegui uma medida protetiva. Ficamos separados por cinco meses, mas voltamos, porque eu não tinha condições de cuidar sozinha dos meus filhos, o mais novo tinha apenas 2 anos. Ficamos mais cinco anos juntos. Há um ano, as agressões recomeçaram e tivemos mais um rompimento.”

Neste um ano de separação, o ex-marido se mudou para São Paulo, onde refez a vida, casando e constituindo outra família.

“Há cerca de um mês ele reapareceu na minha vida. Eu estava na casa onde moramos, e ele me tirou de lá, me ameaçando, dizendo que eu tinha que sair por bem ou por mal. Ele disse que, se fosse preciso, me mataria”.

Por medo, G. deixou seu lar e agora mora, como ela diz, de favor na casa dos pais. “Eu deixei minha propriedade num fim de semana e, no outro, ele e a sua atual companheira entraram. Agora estão na minha casa, com meus móveis, com as minhas coisas, com os brinquedos dos meus filhos. Ele, por conta própria, retirou as minhas roupas e os meus calçados e dos meninos também. Colocou tudo em saco de lixo e pediu a um sobrinho do padrasto dele para levar até uma vizinha onde eu tinha que ir buscar.”

A mulher afirma sentir muito medo e ter necessidade de ajuda institucional. “Eu sinto vergonha, medo, porque ele é capaz de tudo”. Durante a entrevista, G. não deixa escapar sua frustração ao lembrar de quando o casal se apaixonou e começou a namorar. “Nunca imaginei, lá início, que terminaríamos assim. Até porque, da primeira vez que houve agressão, eu o denunciei, mas voltei”. Daqui para frente, a mulher quer dar uma reviravolta na vida, já que sempre dependeu financeiramente do ex-marido. “É vida que segue. Dei início a um curso profissionalizante de magistério, além de correr atrás de outros objetivos, coisas que, quando casada, eu não tinha apoio para fazer. Quero dar bom exemplo para meus filhos e criá-los da melhor maneira possível”, vislumbra.

Ciclo perigoso e de difícil saída

A história de G. é a mesma de muitas mulheres que começam um relacionamento e, quando acontece a primeira agressão, deixam de denunciar ou, quando o fazem, pedem o arquivamento do processo, muitas vezes por amor, outras tantas vezes por dependência econômica ou medo de novas agressões. Na rotina da Casa da Mulher, essa dinâmica é um ciclo corriqueiro, do qual muitas mulheres não conseguem sair. O marido, com medo da prisão, passa por uma mudança repentina, começa a enviar flores, mas, algum tempo depois, parte para a violência costumeira. Uma das ocorrências atendidas na Casa e que não seguiu até o final, era de um casal que, para se redimir da violência, o marido levou a esposa para uma viagem a Natal (RN). Todavia, depois das férias, a vida voltou à rotina, e as agressões recomeçaram. A mulher, inclusive, foi estuprada pelo marido, mas, mais uma vez, pediu o arquivamento do processo e nunca mais voltou.

A advogada que acompanha o caso de G., Letícia Fernandes de Paula Queiroz, faz um alerta: “É interessante, para as mulheres, avaliarem o tipo de homem com quem mantêm um relacionamento. No primeiro contato agressivo, ela tem que pensar muito bem o que quer, porque, às vezes, elas são agredidas porque não tomam providência, porque acham que tudo vai mudar. Mas, infelizmente, a tendência é de que o homem, com esse perfil, mantenha esse comportamento agressivo, alongando esse ciclo de violência.”

De acordo com a coordenadora da Casa da Mulher, Maria Luiza Moraes, quando a vítima chega para atendimento, não apresenta apenas uma queixa, mas várias. “Quando há uma denúncia de lesão corporal, por exemplo, a vítima já sofreu violência psicológica, violência moral, violência patrimonial e, às vezes, até violência sexual. Essas denúncias são sempre relacionadas a alguém da casa da vítima. Nem sempre é o seu atual companheiro, mas pode ser o ex-companheiro, o ex-marido. Há casos de netos que agridem avós, na busca por dinheiro para drogas. Há casos de violência cometida por padrastos. Enfim, dentro do ambiente familiar, há uma gama de pessoas que convivem ali e que podem estar sujeitas à violência e ao que determina a Lei Maria da Penha”, afirma Maria Luiza.

“Há casos de netos que agridem avó, na busca por dinheiro para drogas”, afirma Maria Luiza Moraes, coordenadora da Casa da Mulher (Foto: Fernando Priamo)

A coordenadora também avalia que alguns paradigmas foram quebrados, já que a Casa atende ao mais variado público. “De maneira nenhuma a violência doméstica está limitada a alguma classe social ou à faixa etária. Os grupos mais sujeitos estão compreendidos na faixa entre 15 e 44 anos, mas há casos de idosas e até de crianças. Também não há distinção de raça, classe social. Temos tanto pessoas mais simples quanto pessoas esclarecidas com curso superior como vítimas.” Apesar das 11.975 vítimas atendidas nos últimos cinco anos, Maria Luiza diz que não pode dizer se há um aumento da violência doméstica. “Posso, com certeza, dizer que aumentaram as denúncias em Juiz de Fora. À medida que a Casa ficou conhecida, as mulheres passaram a denunciar mais. Pois elas têm mais confiança e coragem, e as denúncias vêm aumentando gradativamente”.

Vítima diz que teria denunciado a primeira agressão se pudesse voltar no tempo

“Apesar de ele ter sido preso, estou com medo de ele ficar revoltado e voltar pior. Também olho para meus filhos e sinto que estão pior do que eu”, revela Daniele, esfaqueada pelo ex-marido durante uma festa

Daniele Santana, de 34 anos, também viveu por anos durante esse ciclo que se quebrou de forma violenta. Entre idas e vindas num relacionamento conturbado, ela acabou vítima de uma tentativa de feminicídio. No último dia 11, ela estava na festa de 15 anos de uma prima, quando foi esfaqueada pelo ex-marido nas costas e na cabeça. Lutador de muay thai, 32, ele foi preso preventivamente, na semana passada, pela equipe da Delegacia de Mulheres da Polícia Civil. Daniele ficou internada por quase dez dias, porque teve o pulmão perfurado. Segundo ela, jamais acreditou que as ameaças do ex-marido seriam concretizadas. Eles viveram um casamento de 15 anos e com três filhos, de 15, 13 e 10 anos. “Tinha muitas discussões. Mas agressão física não era constante. Teve duas vezes que ele me agrediu, mas por intervenção da mãe dele, não registrei boletim. O monstro que ele é só me mostrou depois da separação, que começou em julho de 2017, quando decidi que não queria ficar com ele porque queria viver minha vida de outra forma. Sempre vivi por ele e queria viver por mim”, desabafa Daniele.

Conforme ela, dois dias depois do rompimento, o ex-marido esteve na casa dela e fez a primeira ameaça de morte. “Ele pegou uma faca e disse que iria me matar. Meus filhos insistiram com ele para desistir e conseguiram tirar a faca dele. Eu não fiz o boletim. Passou um tempo, começamos um diálogo, pensando em voltar, mas ele já tinha outro relacionamento. Na ocasião, ele quebrou meu celular e pegou um cinto para me enforcar. Foi quando percebi que ele era bem agressivo. Um tempo depois, ele voltou e quebrou a porta de casa, foi quando eu fiz o primeiro boletim e entrei com medida protetiva.”

Todavia, mais uma vez, o caso não foi para frente, pois o casal tentou uma nova reconciliação, e Daniele desistiu de dar seguimento ao processo na delegacia. “Voltamos a ficar juntos. Passamos novembro e dezembro do ano passado como casal, mas, no dia 15 de janeiro, decidi que iria acabar, porque ele mantinha outra relação. O homem se desesperou e ficou bem agressivo. Eu tinha que sair escondida, tinha medo de ser perseguida. Nunca passou na cabeça que ele iria me esfaquear. Ele chegou a me ameaçar, uma semana antes, ao dizer que estava juntando dinheiro para comprar um revólver, mas eu não acreditava. No dia da festa, para a qual não foi convidado, ele disse mais cedo ao meu filho que iria descarregar a arma contra mim, mas meu filho não acreditou e não me falou nada. Ele chegou de surpresa, e eu estava dançando, agachada, quando ele me golpeou nas costas. Eu desequilibrei, fiquei de joelhos, quando ele feriu minha cabeça e saiu correndo.”

Naquele momento, Daniele pensou que tivesse apenas levado um soco. “Uma mulher me abraçou e disse fica calma, porque você levou uma facada do seu marido. Nesta hora, percebi o sangramento. Fui socorrida, tive perfuração do pulmão e fiquei internada.” A vítima agora diz não saber como será sua vida, pois ainda não tem trabalho. “Na época do atentado, minha carteira seria assinada na segunda-feira depois daquela festa. Eu perdi esse serviço. Estou sem renda e não sei como vai ser. Apesar de ele ter sido preso, estou com medo de ele ficar revoltado e voltar pior. Também olho para meus filhos e sinto que estão pior do que eu.” A mulher afirma que, se pudesse voltar no tempo, teria denunciado seu agressor na primeira vez, o que talvez teria dado a ela um destino diferente.

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Acolhimento e confiança na hora da denúncia

Atualmente, a Casa da Mulher conta com um setor de recepção, que faz o acolhimento das vítimas. Com simplicidade, o local é preparado para que a vítima sinta confiança para fazer sua denúncia. Caso ela seja vítima de violência física ou sexual, é encaminhada diretamente para a Delegacia de Mulheres, que funciona no mesmo imóvel, pois nesses casos são instaurados processos criminais, nos quais as denunciantes não têm como pedir o arquivamento posteriormente. Já nos outros tipos de violência, as vítimas recebem apoio jurídico e psicológico. “Depois de uma avaliação e sendo constatada a aplicação da Lei Maria da Penha, a mulher solicita uma medida protetiva, que garante uma proteção imediata contra o agressor”, explica a coordenadora da Casa da Mulher, Maria Luiza Moraes.

A Lei Maria da Penha dispõe, entre suas medidas mais importantes, a determinação de o agressor manter uma distância de 300 metros da vítima, de não frequentar os mesmos locais que ela e de não poder ter contato com ela e seus familiares por qualquer tipo de meio. “Vale ressaltar que, quando a vítima procura a Casa da Mulher, já tenha um boletim de ocorrência registrado, porque é fundamental para documentar a agressão sofrida de forma oficial. Hoje temos parceria com a PM e temos aqui um policial militar para fazer esse registro, caso ela ainda não tenha. Recentemente recebemos sinalização do comando da PM para a vinda de uma policial feminina a fim de realizar esse registro, para que a vítima possa ter mais confiança”.

A Casa também conta com a Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica, composta por um policial militar masculino e outro feminino. Entre suas atribuições, a dupla tem a função de deslocar-se a residências das vítimas, quando ela precisa voltar ao local, nas ocasiões em que deixou sua casa sem nada, apenas com os filhos nos braços. “Essa dupla, por meio do diálogo, vai até o local, conversa com o companheiro da vítima e consegue a devolução dos pertences dela”, explica Maria Luiza, ressaltando que a Casa tem projetos com ONGs e com o Ministério Público e OAB de enfrentamento à violência doméstica. No caso em que as vítimas não têm para onde ir, já que muitas vêm de outras cidades, elas são encaminhadas para a ONG Casa de Passagem, onde podem permanecer, por uma semana, para que consigam retornar à sua família.

“Quando comecei aqui na Casa da Mulher, o secretário de Governo José Sóter de Figueirôa me disse que aqui é uma porta de entrada, mas que precisávamos criar uma porta de saída, gerando meios para que a mulher possa se profissionalizar e levar a sua vida de forma autossuficiente, pois muitas vezes ela retorna para o agressor porque não tem independência financeira. Nossa intenção é criar esses meios com a realização de cursos. Já foram feitos projetos e encaminhados para Brasília, pois precisamos de investimento. Então, ainda estamos na fase de espera de aprovação dessas iniciativas”, adianta Maria Luiza. Para ela, a ideia é implantar cursos, como o de cuidadora. “Pois assim a mulher não vai precisar pagar aluguel para ter um espaço e não vai ter que comprar equipamentos. Ela vai contar consigo mesma para trabalhar, ter uma renda e cuidar de seus filhos.”

Quase 50% das medidas protetivas instauradas são de ameaças

A medida protetiva foi instituída pela Lei Maria da Penha e tem caráter inovador, porque visa a proteger os direitos fundamentais da mulher, evitando a continuidade da violência ou das situações que a desfavorecem. No ano passado, 1.597 medidas protetivas foram fixadas na Delegacia de Mulheres de Juiz de Fora. Do total, 761 têm a ver com ameaças, 349 com agressões, 269 de lesões corporais e 218 são de delitos, como atrito verbal, injúria, calúnia, difamação e dano.

Uma das titulares da Delegacia de Mulheres, Ione Barbosa, explica que, para a vítima ter o benefício da medida protetiva, não precisa, necessariamente, haver um inquérito policial em curso, principalmente nos casos de ameaça que não dependem de representação. Entre as medidas, quase 50% se devem a casos de ameaças. “Essa mulher pode ir até a delegacia e requerer somente a medida protetiva, não precisando instaurar um inquérito penal. Muitas vezes, essa medida protetiva resolve aquela situação, fazendo com que cessem as ameaças e as importunações do ofensor em relação à vítima”, avalia Ione, acrescentando: “Se a medida protetiva for requerida logo no início das agressões, evita-se mais complicações. Ressalto que não precisa efetivamente ter havido um crime, se a mulher se sente importunada, ela tem direito a solicitar a medida.

A maioria dos casos diz respeito a mulheres que rompem o relacionamento, e o homem não aceita. Ele começa a ligar, a importunar, a ameaçar, ir até o local de trabalho, porque não aceita o fim da relação. Neste momento, a mulher já pode procurar a delegacia e requerer a medida protetiva, porque, muitas vezes, já resolve. Ela serve para evitar a continuidade da violência, tendo a prevenção como caráter maior.”

A delegada também enfatiza as denúncias como instrumento importante. “Elas podem ser feitas até por um vizinho que sabe que a mulher é agredida pelo marido. O denunciante pode ligar para os números 180, 181 ou 100 ou ir à delegacia. A identidade dele ficará sempre em sigilo. Essa violência deve ser denunciada para que não seja naturalizada”.

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