Encontrando os Flintstones – e descobrindo uma das melhores HQs da atualidade

Por Júlio Black

14/03/2018 às 07h02 - Atualizada 14/03/2018 às 07h38

Oi, gente.

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Como escrevi tempos atrás, mexer com as memórias afetivas de nossa infância é parada complicada, e são vários os motivos. Um deles é perceber como aquilo que achávamos tão legal era uma porcaria ou datado ou visualmente tosco. Exemplos? “Armação Ilimitada”, “Ultraman”, “TV Pirata”. Daí que ficamos naquela vibe “ah, não mexa com isso” quando a DC Comics anunciou, ainda em 2016, que levaria para os quadrinhos vários personagens icônicos da Hanna-Barbera (Flintstones, Herculoides, Scooby Doo, Os Impossíveis, Jonny Quest e Space Ghost, entre outros). Primeiro porque alguns deles já haviam passado pelas HQs com resultados bem mais ou menos; segundo porque falta tempo para ler tudo que chega às nossas mão; terceiro por conta da memória afetiva, afinal muitos desses personagens eram legais, porém com histórias datadas, ou ganharam versões posteriores que estragavam o material original – caso dos Flintstones e da turma do Scooby Doo.

Contudo, porém, todavia, entretanto, a DC deu carta branca para os roteiristas e desenhistas tratarem de temas polêmicos, adultos, atuais, utilizando apenas a essência dos personagens, alguns elementos “canônicos”, e aí os caras foram fundo na viagem. E todo mundo começou a elogiar. E aí a Panini lançou parte do material no Brasil em dois encadernados, e aí veio o comichão de ler. Um deles, ainda não lido, é “Future Quest”, que reúne Jonny Quest, Space Ghost, Herculoides e cia. limitada numa espécie de multiverso que precisa lidar com um supervilão que deseja destruir tudo e mais um pouco. O outro reúne as seis primeiras edições de “Os Flintstones”, e posso garantir sem medo de ser abordado furiosamente na rua por todos os distintos leitores da coluna (três, sem contar A Leitora Mais Crítica da Coluna?) que você dificilmente vai encontrar coisa melhor nas bancas e gibiterias da vizinhança.

Responsáveis por adaptar a mais famosa família da Pré-História para a nona arte, o roteirista Mark Russell e o desenhista Steve Pugh pegam o que havia de melhor na animação dos anos 60 (um retrato cômico, crítico e irônico do modo de vida americano de cinco décadas atrás) para lidar com temas contemporâneos, mais pesados, e dando mais profundidade aos personagens principais, que também ganham traços mais realistas.

No passado de Barney e Beth, por exemplo, havia o drama da infertilidade, que proporciona o momento mais emocionante da série até agora; no presente, tanto Barney quanto Fred ainda encaram o fantasma da guerra de que participaram anos antes; Vilma é uma artista plástica incompreendida, que vê a tradição de sua família – retratada em seus quadros – ser ridicularizada; e Fred também encara a dificuldade de um sistema capitalista que sempre deixa a parte maior do bolo com os mais ricos de sempre, apesar de toda a louvação à meritocracia.

Alguns temas, como a guerra, muitas vezes aparecem como subtramas durante as seis primeiras edições, mas cada história costuma ser fechada em um tema principal. A primeira, por exemplo, lida com a exploração capitalista da força de trabalho e racismo, com o dono da Pedreira do Pedregulho contratando um trio de neanderthais por considerá-los inferiores – sentimento expressado mais adiante pelo próprio Barney, que os chama de “homens das cavernas”. Em outras histórias, há espaço para críticas ao consumismo, com Fred sendo incentivado pela TV a comprar no recém-inaugurado shopping coisas que não precisa, as “porcarias”; à religião, em que aves, elefantes são idolatrados antes da “descoberta” da divindade invisível conhecida como… Gerald.

Na quarta edição, a trama principal gira em torno do preconceito em relação às mudanças na sociedade, com a parcela mais conservadora tratando o casamento, a monogamia, como depravação (“Quanto tempo até que comecem a casar com dinossauros ou postes de luz?”; mais à frente, o alvo são as guerras travadas pelos Estados Unidos com motivos que depois se mostram falsos, sem esquecer da forma como os veteranos desses conflitos são tratados quando voltam para casa.

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“Os Flintstones” em papel mantém outros elementos marcantes do desenho animado, como os animais que substituem os eletrodomésticos, mas também faz as suas citações tanto filosóficas – como à Alegoria da Caverna de Platão e ao livro “Capitalismo: O ideal desconhecido”, de Ayn Rand – quanto a corporações do nosso presente e a figuras públicas conhecidas, casos do cantor Nick Cave e do cientista e escritor Carl Sagan, retratado na HQ de forma satírica.

Ao misturar o espírito original da animação com a dose certa de reverência, boas histórias com temáticas adultas e atuais, humor, sátira, crítica e desenhos inspirados, “Os Flintstones” pode ser considerada uma das melhores e mais surpreendentes HQs lançadas nos últimos tempos. Para os amantes da nona arte, é obra imperdível.

Vida longa e próspera. E iaba-daba-duu.

Júlio Black

Júlio Black

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