Coletivos de JF criam medalha Rosa Cabinda, que foi escrava dos Halfeld

Condecoração, outorgada a mulheres, resgata história de escrava, que entrou na justiça pelo direito de comprar sua alforria


Por Júlia Pessôa

06/03/2018 às 07h00- Atualizada 07/03/2018 às 11h31

“Nós éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços em branco, nas beiras das páginas impressas. (…) Vivíamos nos espaços entre as histórias.” No aclamado romance distópico “O conto da aia”, é assim que a personagem principal, Offred, descreve a relevância das mulheres na sociedade em que vive, um país ficcional em que elas foram roubadas de todos os seus direitos: a posses, à liberdade, à leitura, ao ir e vir, ao próprio corpo. Todos. Em alguns momentos sombrios da atualidade, a semelhança com a obra é assustadora, tão palpável quanto o medo do futuro. Mas em momentos como o que Juiz de Fora viverá nesta quarta (7), algumas personagens conseguem se libertar da condição de viver nos espaços entre as histórias e ter seu papel como agente delas legitimado.

Com a criação da Medalha Rosa Cabinda, idealizada por coletivos feministas locais e outorgada apenas a mulheres, a primeira negra que utilizou a Justiça para obter sua liberdade no município – e batiza a honraria – tem seu lugar na memória da cidade reconhecido e celebrado. De acordo com o livro “Aspectos cotidianos da escravidão em Juiz de Fora”, de Elione Guimarães e Valéria Guimarães, Rosa era escrava pessoal de Dona Carlota Halfeld, esposa de Henrique Halfeld, que não por acaso nomeia uma medalha que, historicamente, é outorgada massivamente a mais homens que mulheres. O inventário de Carlota autorizava que Rosa comprasse sua liberdade, porém o viúvo não aceitou a proposta da escrava, dizendo-lhe que ela valia mais do que a quantia que a negra oferecia, mesmo já sendo mais velha (44 anos) e tendo uma deficiência na mão. Assim, Rosa recorreu aos aparatos judiciários e conseguiu adquirir sua alforria pela quantia que propôs a Halfeld, 300 mil réis.

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Para a historiadora e integrante da Candaces – Organização de Mulheres Negras e Conhecimento -, Mariana Gino, resgatar a trajetória de Rosa é contribuir para reverter a invisibilidade histórica de mulheres, sobretudo as negras. “Quando se fala de história, falamos também de poder. Infelizmente, ela ainda é escrita por homens brancos e heterossexuais, e o que vem pautando os movimentos sociais é buscar essas “Rosas” perdidas na história, sufocadas por machismos e racismos. Resgatá-las faz com que elas ganhem voz e mostra para sociedade quão grande é a presença feminina e negra nestes espaços de poder”, destaca a pesquisadora.

Segundo Mariana, a ação pontual de Rosa, desconhecida da maioria esmagadora dos juiz-foranos e ausente da grade escolar, é um enorme contrassenso ao status quo da época e que viveu – e até mesmo da atualidade, guardadas as devidas proporções. “Rosa é potência. Estamos falando de 1870, quando a Lei Áurea (que aboliu a escravidão) ainda não havia entrado em vigor. Juiz de Fora tinha um enorme contingente de escravos, mais do que Ouro Preto e Mariana. Ao conseguir judicialmente o direito de comprar sua liberdade, ela subverte a ordem de homem submetendo mulher, branco submetendo negro. Ela rompe com estes processos e sinaliza outra possibilidade, o que é um grande feito em um sistema social assimétrico que é baseado no poder da cor e do gênero.”

A historiadora pontua, ainda, que a relação de invisibilidade de Rosa fica clara mesmo quando a “homenagearam”, dando seu nome ao largo situado no cruzamento das ruas Moacyr Amado dos Santos com Professor Lander, no Bairro Vitorino Braga. “As ruas do Centro de Juiz de Fora têm nomes de figuras que a história decidiu que eram consagradas. As Rosas Cabindas ficam relegadas a espaços em regiões periféricas, o que é um apagamento de sua trajetória, uma forma de silenciamento. Para fazer a comparação específica, é só pensar que a população conhece amplamente a Rua Halfeld, o Parque Halfeld, homem branco, de quem Rosa era escrava.”

Medalha será entregue a 25 mulheres na Câmara

Em uma das ações em referência ao Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, diversos coletivos feministas se reuniram e criaram a Medalha Rosa Cabinda, que, segundo a organização, visa a homenagear mulheres que, de alguma forma, são merecedoras desse agradecimento. A outorga será entregue nesta quarta (7), às 19h, na Câmara Municipal, a 25 contempladas, que foram indicadas em um fórum que reuniu mais de 30 grupos, movimentos de mulheres e sindicatos. “A ideia é fazer todos os anos, mas não é institucionalizar. A gente resiste, mas somos rebeldes, a medalha não é institucionalizada. Vamos ocupar aquele espaço da Câmara, entregar a nossa medalha, do nosso jeito, é uma proposta completamente marginal”, diz Lucimara Reis, integrante do Fórum 8M, um dos coletivos envolvidos com a organização.

Além da medalha, haverá, no dia 8 de março, um chamamento à Greve Internacional de Mulheres, com um ato político e cultural a partir das 18h. A iniciativa, que tem o lema “Juntas na Resistência”, em referência às pautas universais de diversas vertentes do feminismo, terá manifestações artísticas e culturais, como circo, fotografia, capoeira, música, dança, poesia, entre outros, tudo apresentado por mulheres, com mais de 20 atrações. Das beiras das páginas impressas para as ruas, e motivadas por tantas Rosas Cabindas, as participantes marcharão da Praça da Estação até a Rua Halfeld, na altura do Cine-Theatro Central, direto para seu direito inalienável de protagonismo da História. Assim, com “H” maiúsculo.

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