Armazenamento quase cheio


Por Júlia Pessôa

10/12/2017 às 07h30

Um dos maiores tesouros dos jornalistas é seu caderninho de telefone, com contatos de fontes e gente que dá o caminho das pedras para que possamos construir a matéria-prima do nosso ofício, as notícias. Ao contrário do que acontece no capitalismo – e felizmente -, é comum que a gente se depare, na enorme maioria das vezes, na profissão, com gente disposta a compartilhar suas riquezas, Robin Hoods cotidianos dos contatos.

Nesta semana, uma colega de profissão veio angariar, como tantas vezes já fiz com ela, um tanto do meu ouro: “Júlia, você tem o telefone da Lara Toledo?”, disse ela, perguntando sobre uma amiga-irmã que a faculdade e Juiz de Fora me deram. “Tenho sim, gata”, respondi, já preparada para digitar o número que tantas vezes “disquei” (desculpem, sou dessa geração). Mas não veio. “Noooooove (como a gente faz agora, falando pausadamente, depois da mudança dos números) – oito-oito-cinco-meia….”, comecei a recitar mentalmente. Mas o fim da sequência nunca vinha, como se tivessem formatado meu HD cerebral e eu tivesse perdido o dado.

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Resignada, consultei a agenda do celular e passei o contato, mas não sem ficar decepcionada pela minha amnésia. Lembro-me claramente de quando tinha os telefones de tudo mundo – ou quase – que importava muito na cabeça. E, claro, dramática e problematizadora que sou, logo comecei uma série de questionamentos, porque esta cuca (olha a idade de novo) jamais consegue esfriar. Será que esta digitalização das informações nos distancia do que – e mais importante, de quem – já esteve tão perto e fresco na nossa memória? A vida adulta e todas as obrigações e correrias estariam tomando o espaço de nossos afetos em nossas mentes? Estamos perdendo a capacidade de guardar o que importa na caixola, tão metralhada por informações em bits?

Na fina ironia do cotidiano, repetia estas perguntas em looping infinito na cabeça enquanto deslizava o dedo no touch screen, e caí na galeria de fotos do meu celular. Futucando meus registros, apaguei algumas bobagens recebidas por WhatsApp, umas selfies feias que a gente tira sabe a Deusa por quê, e prints de telas de que eu não precisava mais. Foi quando eu percebi que tenho pouquíssimas fotos com a Lara no sempre-quase-lotado armazenamento de meu Samsung. E com a minha mãe. Meu pai. O Renato. Minha família em geral, meus amigos e praticamente todo mundo que mais amo: são raríssimos entre os arquivos. É que quando estamos juntos, pouco me importa esse anexo digital de mim, o smartphone, com todas as suas potencialidades.

E aí ficou tudo claro: que se dane que estejamos gagás para lembrar números de telefone. O amor, esse sim, é analógico, não cabe em dispositivos de armazenamento, e fica em um HD inesgotável e incorruptível.

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