A pele que habito

Mulheres compartilham com a Tribuna seu sentimento em relação a marcas que fazem delas únicas no mundo


Por Julia Campos, estagiária, sob supervisão do editor Wendell Guiducci

26/11/2017 às 07h00

Conviver em harmonia com cicatrizes, manchas e pintas visíveis e de tamanhos consideráveis é algo que, aos olhos de muitos, não é possível. Mas será mesmo que uma característica que o torna único no mundo deveria ser sinônimo de vergonha e estranheza? Quatro mulheres contaram à Tribuna que essa não é uma possibilidade a ser considerada. Elas se amam, se sentem lindas e convivem muito bem com suas marcas e as histórias que elas contam.

Eloísa Helena de Menezes, 59, aposentada

Foto: Leonardo Costa

Como sua cicatriz apareceu?

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As cicatrizes são devido às cirurgias… eu fiz uma mastectomia (retirada da mama). Particularmente não me incomoda.

Como foi esse processo até a mastectomia?

Eu descobri o câncer em 2008 através dos exames de rotina que a gente tem que fazer. Num desses exames apareceu um nódulo. Fiz a primeira biópsia, e depois do resultado foi detectado que tinha um carcinoma maligno e teria que ser retirado. Então retirei a mama direita toda e também operaram a axila. Entre a descoberta e cirurgia foram 15 dias.

A senhora ficou com medo de ter que retirar a mama?

Medo, por incrível que pareça, não tive. Eu sempre tive na minha cabeça que aquilo que não me pertencia, eu jogaria fora. O câncer não me pertencia, joguei ele fora. É difícil, mas a pessoa tem que aceitar. Com o passar do tempo, a gente vai escutando o testemunho de outras pessoas, das outras colegas que passaram pela mesma coisa, e vai vendo que, aos poucos, a aceitação é um fator muito importante. Um outro ponto muito difícil de as pessoas aceitarem é a estética. Principalmente as que são casadas, que têm namorado… para elas é mais difícil, porque vai ficar faltando uma parte, como elas mesmas dizem, e o seio é uma parte muito importante do corpo, para a estética, para o equilíbrio… Eu optei por não fazer a prótese, que eles dão para a gente.

Por que a senhora optou por não colocar a prótese?

Na época essa reconstituição não era feita imediatamente. Eu teria que esperar passar pela quimioterapia, pela radioterapia, para depois fazer o processo da reconstituição. E eu achei que seria bem mais doloroso para poder colocar o silicone ou um próprio músculo do corpo. Como eu já tinha na minha mente que eu estava retirando uma coisa que não me pertencia, eu não queria colocar outra, que no caso era o silicone. Eu ia ter que abrir a cirurgia novamente, passar por cinco etapas de cirurgias para poder fazer essa reconstituição… e eu optei por não fazer.

Nunca me incomodou a parte de me olhar, que é outro ponto importante. Depois que a pessoa faz a cirurgia, precisa se olhar no espelho, passar a se aceitar do jeito que você está. Muitas das vezes é uma das partes mais difíceis, é você se olhar no espelho e ver que não tem mais uma mama. Aí você tem que começar a trabalhar a autoestima… através destas próteses que são doadas para a gente, psicólogo, assistente social, você vai e conversa… é um passo de cada vez. A partir do momento em que você se olhou a primeira vez no espelho, o importante é você se sentir bonita. Com a mama ou sem a mama.

A senhora ficou mais vaidosa depois da cirurgia?

Muito mais! Não só na parte da vaidade, mas começa a fazer coisas que achava que não conseguiria. Hoje eu participo das corridas de rua de Juiz de Fora. Eu não corro, porque também tenho uma prótese no joelho, então faço caminhada. Aí quando você ganha uma medalha, aquela medalha é uma vitória a mais, e você passa a valorizar aquilo que não valorizava antes. Pinto meu cabelo de rosa, pintei por acaso e continuei, e agora provavelmente não tiro mais. É como se fosse a minha marquinha registrada, é o meu cabelinho rosa.

A sua cicatriz hoje é uma lembrança dessa luta que a senhora passou?

Para te falar a verdade, a minha cicatriz quase não tem marca, de tão bem feita que foi a minha cirurgia, graças a Deus! Não tive problemas de queloide, que muitas pessoas têm. Não tive infecção e nem rejeição nos pontos. Eu falo que Papai do Céu foi tão misericordioso comigo, porque da maneira que eu aceitei ele resolveu, “não vou deixar ficar marca grande não, vai ficar só um risquinho fininho, você não vai nem perceber”.

Karla Cristina Gonçalves, 32, recepcionista

Foto: Marcelo Ribeiro

Além do rosto, em quais outras partes do corpo você tem vitiligo?

Eu tenho vitiligo desde 2006, e tenho as manchas nas mãos, no pescoço, na nuca, e no rosto.

Você tem ideia do por que elas apareceram?

O que eu já ouvi relatarem, o que eu já li sobre o assunto, é que existe um fundo emocional. Na verdade, hoje eu acredito que todas doenças, qualquer tipo de doença, tem um fundo emocional, não só o vitiligo. Eu me recordo que, quando elas iniciaram, nessa época de 2006, eu realmente estava passando por um momento de estresse muito grande, uma pressão psicológica muito grande. Foi aí que as manchas surgiram.

Como você reagiu quando elas apareceram? 

Eu tinha uns 19  para 20 anos, alguma coisa assim. Foi bem complicado, primeiro pela forma que foi… eu cheguei a ir em um dermatologista, e ele me falou “Ah, você está com vitiligo”, e eu não sabia o que era, e ele disse “Pesquisa na internet”. Saí do consultório desse dermatologista achando que eu estava com câncer, por causa da forma como ele falou comigo. Não foi fácil, eu tive vários traumas por causa disso, eu não queria me tratar porque entendia que, se não tem cura, eu não vou me tratar. Cheguei a tratar com quatro dermatologistas diferentes e nunca dava continuidade.

Eu falava que não ia mais sair de casa, e quando saía, se eu ia para alguma festa, usava base. Eu usava para todos os lugares onde eu ia, até dentro de casa. Também tinha a questão de achar que nenhum garoto se interessaria por mim, porque eu era toda manchada , e na época eu nem tinha tanta mancha igual hoje. E eu até tinha namorado, ele achava que era a coisa mais natural do mundo. Estava tudo dentro de mim mesmo.

Como você lida com o vitiligo atualmente? 

Hoje eu vejo que ter iniciado e parado vários tratamentos me trouxe prejuízos, porque o tratamento colabora para que a doença não avance, para que não surjam novas manchas… um controle.  Hoje eu vejo que, se naquela época, quando eu tinha uma manchinha mínima do lado da boca, eu tivesse me tratado, mas principalmente, tratado a questão psicológica, talvez as manchas não tivessem avançado tanto.

Além do tratamento com medicação, muitos anos depois eu iniciei um processo de ajuda terapêutica… não foi nem por conta do vitiligo, mas acabou que isso foi o que me fez enxergar a doença de uma forma diferente. Foi a partir desse momento que eu comecei a me aceitar com as minhas manchas… a não encarar como algo feio, ou algo de que as pessoas têm medo. Eu uso uma base, que é própria para o vitiligo, manipulada de acordo com o tom da pele da pessoa, bem discreta, mas só para a área do rosto e mais para trabalhar. No meu dia a dia eu saio tranquilamente sem base. A minha maior felicidade é poder sair sem ter que disfarçar as minhas manchas, porque é como se eu estivesse disfarçando uma parte de mim.

As pessoas te perguntam muito sobre as manchas?

Muitas pessoas me perguntam, me param na rua para me dar receitas de remédios, indicar médico, e a maioria delas têm sempre o mesmo comentário: “você é uma menina muito bonita, trata que você vai sarar”. Eu acho até engraçado. No início me incomodava sim, eu chorava… Mas hoje eu escuto o que a pessoa tem a dizer, agradeço, porque, de alguma forma, ela está tentando me ajudar.

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Mariana Mendes, 24, estilista

Foto: Marcelo Ribeiro

Sua pinta é de nascença?

Sim, é de nascença.

Você sempre gostou dessa característica sua?

Sim, sempre gostei, por mais que seja uma característica física, ela faz parte de quem sou hoje, ela ajudou na construção da minha personalidade.

Na infância e na adolescência você sofreu com deboche?

Crianças são muito curiosas, o que é bem normal. Então as perguntas são frequentes e não só das crianças, dos adultos também. Mas um deboche que chegou ao ponto de me deixar mal, isso nunca aconteceu. Claro que existem pessoas que criticam e que não gostam, mas vejo isso apenas como a opinião delas.

Em algum momento da sua vida você não quis ter a pinta? Como foi esta fase?

Isso nunca foi uma questão para mim, a minha pinta faz parte de quem sou. Sem ela, me faltaria uma parte, portanto nunca quis tirar e nunca consegui me imaginar sem a minha pinta. Ela me torna única e diferente, e eu gosto disso.

Você se sente mal com a curiosidade alheia, acha invasivo?

Não, pois sei que algo diferente desperta curiosidade. Existem perguntas que não são muito agradáveis, pois as pessoas têm uma dificuldade de acreditar que alguém com uma marca de nascença se aceita e se ama como é. Portanto uma curiosidade bastante recorrente é se eu quero tirar minha pinta, exatamente pelo fato de acharem que eu sou diferente, se tirando ela eu seria mais “normal”, mas respondo sempre educadamente que não tenho motivos para tirar, pois eu me amo como sou e a minha pinta faz parte de quem sou.

Corina Ventura, 62, empresária

Foto: Acervo pessoal

Como apareceu sua cicatriz?

Nasci com um nevos (espécie de lesão na pele, como uma mancha ou pinta) na metade do rosto, é um sinal congênito. Aos 12 anos minha mãe resolveu tentar fazer uma cirurgia plástica com o grande cirurgião da época, Ivo Pitangy. Foi feito o melhor da época, tiraram pele da minha coxa, retiraram o sinal e colocaram o enxerto. Depois eu teria que fazer novas cirurgias de correção. Eu nunca mais quis fazer outra cirurgia. Cresci e fui muito feliz com a minha cirurgia, com meu rosto, nunca dei muita confiança não.

As pessoas perguntam muito sobre a cicatriz?

Perguntavam, agora nem perguntam mais. Eu sempre respondia com educação o que era, explicava, mas nunca me incomodei, nunca atrapalhou nada na minha vida.

Nunca teve problemas com autoestima por causa da cicatriz?

Se eu tivesse que corrigir alguma coisa agora na minha vida, com a minha idade, ia corrigir a minha barriga, que está horrorosa, de três filhos que eu tive, porque do rosto, não estou nem aí. Não mudou nada. Me acho linda, me acho gostosa, inteligente, me acho empoderada, então não estou nem aí. Acho que isso vai muito da cabeça da pessoa, né? Tem coisas piores na vida, muito piores. Tem mulheres lindas e maravilhosas que você vê por aí que são cheias de problema.

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Karla Cristina Gonçalves (Foto: Marcelo Ribeiro)

 

 

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