Exposição do Mamm reverencia Ouro Preto e livro de Murilo Mendes sobre a cidade

Mostra aborda cidade histórica mineira e último livro do escritor antes de seguir para a Europa, ‘Contemplação de Ouro Preto’


Por Mauro Morais

04/11/2017 às 06h33- Atualizada 07/11/2017 às 14h50

 

Cultura popular e religiosa serve como tema da obra de Carlos Bracher (Foto: Fernando Priamo)

Para retratar Ouro Preto, basta abrir as janelas de casa e Carlos Bracher encontra seu “modelo vivo”. Para pintar “Retábulo do altar-mor da Igreja de São Francisco”, o artista adentrou a famosa igreja, um dos primeiros bens tombados, em 1938, na cidade considerada Patrimônio Histórico da Humanidade. Para descrever Ouro Preto, bastou a Murilo Mendes acessar suas porções mais íntimas. Estava lá o barroco do poeta, que, como o barroco do pintor, surge em volume e tintas fortes. “Solta, suspensa no espaço,/ Clara vitória da forma/ E de humana geometria/ Inventando um molde abstrato;/ Ao mesmo tempo, segura,/ Recriada na razão,/ Em número, peso, medida;/ Balanço de reta e curva,/ Levanta a alma, ligeira”, descreve Murilo Mendes em um dos 17 poemas de seu último livro escrito em solo brasileiro antes de partir para a Europa, em 1952.

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“Símbolo de nacionalidade e amotinação, terra de ‘Marília de Dirceu’, com seus altares, muros, musgos, perpétuas e tintas, mistério e ‘batizado’, arrebatou o poeta Murilo Mendes que, sob o baldaquim poético, escreve entre 1949 e 1950, ‘Contemplação de Ouro Preto’ (1954), suíte barroca, um colóquio soturno e fatídico, decorrente da experiência real e de pessoal imaginação, cujo entusiasmo ocorre no rastro do alento modernista firme na restauração do passado nacional, resguardada em diversos textos notáveis, a exemplo, o segmento dedicado às cidades históricas por Carlos Drummond de Andrade no livro ‘Claro enigma’ (1951)”, apresenta, em texto para a mostra homônima, em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes, o curador José Alberto Pinho Neves.

Altar representado por Paulo Alvarez (Foto: Fernando Priamo)

Título que prenuncia o interesse geográfico e histórico-cultural presente em “Tempo espanhol” (1955-1958), “Janelas verdes” (1970), “A idade do serrote” (1965-1966) e “Convergência” (1963-1966), o livro sobre a cidade histórica de Aleijadinho surge numa exposição milimetricamente bem cuidada, como se estivesse ilustrado por artistas que o escritor não teve tempo de conhecer. No terceiro andar do museu que leva seu nome, com as paredes num roxo utilizado pela igreja no período da Quaresma, o canto de Verônica ressoa pela sala dizendo de um lugar que é, sobretudo, cenário da fé, do dourado exuberante dos altares à simplicidade dos tecidos que formam as cruzes penduradas nas portas.

“Oh vós todos /Que passais pela via,/ Vinde e vede: Se há dor semelhante à minha! /Atentai, povos do mundo,/ E vede a minha dor”, canta a mulher que limpou o rosto de Jesus durante a Via Crucis e, na exposição, surge representada por uma atriz em vídeo sobre a “Paixão de Cristo” e, ainda, em pinturas feitas ao longo da história da arte, na Idade Média, no Renascimento, no Maneirismo e contemporaneamente. O eixo final da mostra reserva, também, o sudário com a face de Jesus pertencente à Arquidiocese de Juiz de Fora.

“A poesia do Murilo Mendes, os próprios pesquisadores dizem isso, tem, uma construção literária diferenciada nesse livro. É um texto muito rico em imagens. Ali há um marco para a atenção dele com as questões culturais. Ele retrata o barroco mineiro de uma forma muito distinta”, pontua Paulo Alvarez, responsável pela expografia do projeto. “Partimos da narrativa dele, das descrições da cidade, com suas pedras, ladeiras e casarios, depois seguimos para a religiosidade, para a arte popular e, então, concluímos com um pequeno panteão”, acrescenta o profissional, também um dos dez artistas a integrar a mostra.

Para Carlos Bracher, cuja participação se dá com telas pertencentes à serie “Aleijadinho” – nas quais sobressaem-se ricos contrastes entre claro e escuro, branco e tons quentes -, a exposição, com uma das mais impressionantes montagens dos últimos tempos na cidade, poderia figurar em quaisquer outros museus do país. “(Murilo Mendes) cruzou ares, guindou pedras e montes, subiu e desceu íngremes ladeiras perquirindo o verbo do que ali se ensejara em arte, substância e pensamento. Dessa peregrinação nasceu tal cantata telúrica espectral, com os olhos de sua delicadeza e a agudeza de sua alma inventiva, descerrando-se aos abismos da contemplação sinuosa, libertária e mística às terras mineiras”, elogia o pintor, referindo-se à obra muriliana.

 

A generosidade transposta para as paredes

Além das fotografias de Murilo Spinelli Pinto, descrevendo uma Ouro Preto de ricos detalhes, compõem a mostra pinturas de Fani Bracher em referência à morte (tema de poemas do livro de Murilo Mendes), um retrato do Museu da Inconfidência feito por Fernando Lucchesi, releitura de obra de Emeric Marcier realizado por Ricardo Cristofaro e uma série de pinturas religiosas inédita de Hélio Siqueira, que também assina peças de cerâmica em reverência a símbolos de fé. Mineira de Guarani, Zilah Consentino recebe um reconhecimento póstumo ao ter um de seus trabalhos inseridos na mostra. “Na técnica do entalhe, ela não fez muita coisa. Ela pintava sedas, porcelanas, peças de enxoval. Não teve uma carreira de artista plástica. Pintava por deleite”, conta Paulo Alvarez sobre a “artista-artesã”.

Enquanto Ricardo Homem faz referência ao ouro, ponto de partida da cidade, em trabalho exposto na vitrine, Arlindo Daibert discute a luta que deu origem à fama do lugar. Acima de um desenho reproduzindo “Tiradentes supliciado”, de Pedro Américo, Daibert reúne uma sequência de pequenas fotografias de personalidades que também lutaram por um ideal país, como o militante Betinho e seu irmão Henfil, todos com o triângulo de Minas sobreposto sobre seus rostos. Tanto a Ouro Preto política quanto a Ouro Preto religiosa ressoam por todos os cantos, sejam os cantos-lugares, sejam os cantos-cantados.

Barbárie atualizada

“Portinari evidencia no painel ‘Tiradentes’ o sentimento de frustração, a imagem da nação destroçada e saturada de medo, sufocada pelo poder opressor, reclamante de justiça, liberdade e igualdade, outrora… agora e sempre”, apresenta o painel na entrada do museu, fazendo a ligação da exposição do primeiro pavimento – “Juiz de Fora na Verde” – à mostra no terceiro andar, sobre Ouro Preto. Encomendado por Francisco Inácio Peixoto, escritor integrante do Movimento Verde, a agigantada tela com mais de 17 metros de comprimento seria instalada no Colégio Estadual de Cataguases, mas, após protestos dos moradores locais, acabou sendo adquirida pelo governo paulista para compor a paisagem do Memorial da América Latina. Impactante, a obra revela Tiradentes como líder; Tiradentes, o supliciado; e Tiradentes e seus membros espalhados por postes da praça que leva seu nome. Imponente, a reprodução na fachada de um dos principais museus juiz-foranos atualiza a selvageria do período colonial e faz o confronto urgente entre a potência da arte diante da barbárie.

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• CONTEMPLAÇÃO
DE OURO PRETO

Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, sábados e domingos e feriados, das 12h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro)

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