Falta de acesso marca trajetória de pessoas trans
Necessidade de políticas públicas fica evidente quando se mostra a falta de orientação de familiares e dificuldades enfrentadas até mesmo em atendimentos de saúde e sociais
Um adolescente de 12 anos que não se identifica com a sua identidade de gênero conseguiu ter acesso a uma tutela antecipada da Vara da Infância e da Adolescência da Comarca de Uberlândia para ter acesso a tratamentos e acompanhamentos médicos, psicológicos e psiquiátricos para interromper a puberdade e proteger seu direito fundamental à saúde no final do mês passado. O acompanhamento do caso foi feito por uma equipe multidisciplinar da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), que emitiu os relatórios usados como base do pedido endereçado à Promotoria de Justiça, para que o adolescente pudesse interromper a puberdade. Os medicamentos têm efeitos reversíveis e deverão ser usados até que o jovem atinja os 16 anos e possa decidir pela continuidade da transição ou não. O promotor Jadir Cirqueira de Souza permitiu o procedimento.
Esse é um dos casos que fogem ao tratamento normalmente recebido pelas pessoas trans. O acesso a inúmeros serviços públicos é difícil para as pessoas que não se identificam com suas identidades de gênero. Muitos desses problemas são compartilhados dentro do projeto de extensão “Cidadania e Direitos Humanos: um grupo de apoio para pessoas travestis e transexuais da Zona da Mata Mineira”, do Núcleo de Pesquisas e Práticas em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde vinculado ao Departamento de Psicologia da UFJF.
No último mês, por exemplo, o projeto começou a atender familiares de pessoas trans e travestis. “Percebemos que algumas pessoas vivem um conflito em assumir suas identidades de gênero para a família, temendo a não aceitação por desconhecimento, por não saber o que é, pelo preconceito que poderiam sofrer lá fora. Então, resolvemos mediar essa relação para fortalecer esses vínculos familiares”, explica a psicóloga Brune Coelho. Ela salienta que é importante trabalhar no contexto, para que ele se torne cada vez mais respeitoso.
O atendimento tanto no grupo de apoio, quanto nos encontros voltados para a família são gratuitos e possuem participação livre. Eles acontecem no Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UFJF, na Rua Santos Dumont 214, Granbery.
Processo de desconstrução de ‘verdades’
As famílias precisam lidar com as expectativas que tinham em relação a determinado gênero e como ficam as coisas após a transição, conforme a psicóloga Brune Coelho. “Quando a pessoa começa a assumir e trazer a público sua identidade de gênero, a gente percebe que as famílias precisam desse apoio para compreender as demandas dela, para diminuir medos e ansiedades. Ainda é preciso descolar a questão de gênero da orientação sexual. O gênero é como ela se vê e se reconhece independente da orientação. Precisamos desconstruir essas ‘verdades’ que a gente reproduz e naturaliza o tempo todo”, alerta Brune.
A falta de entendimento sobre quem são as pessoas trans e travestis é uma das maiores barreiras para a garantia do acesso aos direitos. “Só agora essa questão ganhou visibilidade. Só agora as instituições de saúde e de ensino públicas e privadas estão se adaptando às pessoas trans. Por conta disso, ainda há muitos direitos que são violados”, diz Brune. Ela reforça a importância de começar a movimentar as coisas na cidade, vencendo as resistências. “Ainda há muita coisa a ser feita para garantir o básico.”
De acordo com a professora e pesquisadora, coordenadora do projeto de extensão Cidadania e Direitos Humanos, Juliana Perucchi, falta tudo do ponto de vista da cidadania para pessoas trans e travestis. “Quando discuto porque a pessoas trans não têm acesso a direitos comparando com o que eu tenho, não só com o marcador de gênero cis, mas com todos os outros marcadores sociais, branca, classe média, professora, não são detalhes. O que há para elas é muito pouco. O que as políticas públicas oferecem – vou usar um termo da socióloga Berenice Bento – são ‘gambiarras’.”
Segundo Juliana, situações como o reconhecimento do nome social são atitudes democráticas. “Estamos em um debate sobre o sujeito de direito, e é isso que tem que estar como pano de fundo. Do ponto de vista local, precisamos avançar muito. Temos muitas frentes deficitárias.” A professora identifica a falta de um movimento social articulado, que esteja presente nas audiências públicas e em outros ambientes nos quais o Executivo municipal é chamado a prestar contas. “É preciso uma organização maior enquanto movimento social. Mas esse não é o nosso papel. Não é o papel da universidade. Tenho colocado muito isso para os meninos que participam do projeto. Porque, enquanto projeto de extensão, temos limitações. Ele tem sua função e não pode cobrir uma lacuna que é do movimento social”, esclarece a coordenadora do projeto.
Entre os entraves está o do tratamento hormonal
Ir ao posto de saúde buscar atendimento médico pode parecer algo banal. Um atendimento que deveria ser universal, ainda é vexatório quando, por exemplo, o nome com o qual a pessoa se identifica não é respeitado. Conforme Brune, esse é o principal problema do município “O nome social é um paliativo usado até que a pessoa consiga retificar seu nome civil, por isso, o nome social não resolve. Para que a pessoa seja reconhecida pelo Estado do ponto de vista jurídico, é necessário que o nome social se torne o novo nome de registro. Muitos dos participantes do grupo chegaram a relatar que médicos, tanto da rede pública, quanto da particular, disseram não ter capacidade para lidar com eles. Percebemos esse despreparo. A pessoa trans não é vista com a complexidade que tem e não é atendida de forma segura, porque não é um ambiente de acolhida”, comenta Brune Coelho.
A psicóloga explica que os entraves são muitos, entre eles está o tratamento hormonal. “Há muitos casos de pessoas que começaram a se automedicar porque o sistema de saúde se mostrou despreparado para lidar com elas. Mas é importante que as pessoas saibam que os hormônios funcionam de maneira diferente em cada organismo e, por isso, o acompanhamento médico é fundamental”, recomenda Brune. Porém, mais do que os serviços, o desrespeito e a discriminação são as maiores violações às quais as pessoas trans e travestis são expostas diariamente. “Muitas vezes, não é uma questão nossa com o nosso corpo, é com o que vem dos outros. Somos vítimas de transfobia todos os dias. Seja com o desrespeito ao uso do nome social, ao uso do banheiro conforme a nossa identidade de gênero e os questionamentos pelos quais passamos”, comenta a mulher trans, militante e participante do grupo, Bruna Leonardo.
Na sexta-feira (18), Bruna apresenta uma palestra com o tema “Relações entre preconceito e o adoecimento da população LGBTI” dentro da semana Rainbow da UFJF, às 16h.
Ainda há pouca visibilidade nas pesquisas
O “Cidadania e Direitos Humanos: Um grupo de apoio para pessoas travestis e transexuais da Zona da Mata Mineira” nasceu da pesquisa da professora Juliana Perucchi e da rede que forma com pesquisadores de outros núcleos e de outras universidades federais. Em um desses contatos, a professora Maria Juracy Filgueiras Tonelli a convidou a participar de uma pesquisa chamada “Abjeções e devires: corpos trans e travestis em trânsito”, uma pesquisa que aconteceu em Florianópolis (SC), Recife (PE) e Juiz de Fora, por conta das relações internúcleos e elementos em comum. Depois de um ano de trabalho, Juliana fez uma proposta à Fundação de Amparo à Pesquisa em Minas Gerais (Fapemig) com base nas especificidades encontradas em Juiz de Fora.
“É um tema caro, mas ainda muito negligenciado. Os grupos que trabalham essa temática merecem maior visibilidade. O Visitrans, ou Família Visitrans – maneira como os participantes se identificam e nomeiam o grupo – nasce como um projeto de pesquisa com uma interface explícita e muito consistente de extensão, porque, por meio desse grupo, produzimos dados para dar visibilidade às questões que são problemáticas de pesquisa e depois esperamos que venham orientar políticas públicas.” Além dessa articulação, há contato com a UFMG, com a UFU, esse, considerado por Juliana um dos mais bem organizados em relação ao Ambulatório Saúde de Travestis e Transexuais. “O que nos une é ter as experiências trans como legítimas do ponto de vista da cidadania e direitos humanos. Cada um atuando em uma frente.”
Ampliação de serviços
De acordo com Brune, já há avanços formados a partir de uma rede informal de contatos feitos por meio do grupo e para o grupo. “Temos uma médica ginecologista que acompanha as meninas e meninos do grupo a cada 15 dias, dentro do Serviço de Atendimento Especializado (SAE), um órgão em que conseguimos encontrar portas abertas. Queremos que as pessoas se sintam mais à vontade e sejam respeitadas. Ela é uma profissional sensível, compreende as nossas demandas.” Mas é preciso ir além. A ideia é conseguir, futuramente, fortalecer articulações para que se possa ter um ambulatório em Juiz de Fora. Mas para isso, é necessário contar com sensibilidade do poder público e com o aumento da disponibilidade de recursos humanos para atender a demanda.
O próprio CPA da UFJF tem uma fila de espera muito grande, segundo a professora Juliana, porque, embora conte com psicólogos voluntários, a necessidade é bem maior do que as possibilidades deles.