Shukraan ya ‘abi


Por Daniela Arbex

13/08/2017 às 07h00

Quando o meu pai deixou a Síria, sua terra natal, em direção ao Brasil – nova pátria que acolheu sua família árabe -, ele era uma criança. Em busca de um lugar mais próspero para viver com os filhos, meus avós deixaram Damasco e todo o resto para trás. No baú do seu José restaram apenas as lembranças e a saudade do ninho que ele foi obrigado a abandonar. Nunca mais teve oportunidade de revisitar suas origens. Ao aportar no Rio de Janeiro há mais de oito décadas, o menino sírio enxergou um mundo novo.

Sem ter passado pelo drama de uma guerra que já matou mais de 400 mil pessoas, meu pai cresceu seguro em terras brasileiras. Aqui, adaptou-se à culinária e aprendeu a língua portuguesa, mas nunca abriu mão do shishbarak, iguaria dos deuses que a minha tia Josefina continua a preparar como ninguém.
Quando eu era pequena, presenciei muitos encontros dos Arbex falados em árabe. Preservar o idioma era a forma que minha família paterna encontrava para enganar as saudades de casa. Confesso que nunca aprendi uma palavrinha sequer da língua materna de seu José. Hoje me arrependo de não ter tentado.

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Em função da troca de país, meu pai foi registrado no cartório brasileiro em março de 1928, um ano de atraso em relação à sua verdadeira data de nascimento. Por isso, apesar de a identidade marcar 89 anos, ele já adotou os 90 desde o início de 2017 e o discurso da “última vez”.

De uns tempos para cá, tudo pode estar acontecendo pela “última vez”.

– Mas filha, essa pode ser a minha última oportunidade de estar com fulano, diz, abusando do direito de ter 90 anos por dois anos seguidos.

O agora tornou-se urgente para ele. Seu José tem pressa de viver, embora não perceba que, no seu caso, o tempo tem sido muito generoso. Aos 90 – agora sou eu adotando o discurso dele -, meu pai continua incrível, mesmo empunhando sua bengala. Muitas vezes, ele dá risadas como um garoto e vibra com o seu time de coração, o Flamengo, com o vigor que pessoas com a metade da idade dele não têm.

Nesse Dia dos Pais, no qual a gente se despede do seu período octogenário e segue juntos para o futuro – a vida não termina, lembra? -, quero dizer shukraan ya ‘abi (obrigada, pai!). Como não sei fazer quibe, hoje tem feijoada!

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