O aposentado Laurides Ferreira e seus bonecos de madeira
Aos 70 anos, ele fabrica os artesanatos e vende no Centro da cidade para complementar a renda da aposentadoria
“Esses artesanatos aí começaram com essa crise”, diz o senhor Laurides Antônio Ferreira, apontando para pequenas casas pintadas em rosa, flores e pássaros coloridas, além de bonecos trapezistas, tudo feito em madeira, pintado à mão e exposto num tecido esticado sobre a calçada, na esquina da Avenida dos Andradas com a Rua Barão de Cataguases. “Aprendi com minha força de vontade e com a necessidade. Nunca tinha feito isso. Fiz primeiro uma casinha. Minha esposa gostou e pôs algum defeito. Eu procurei melhorar. Quando não crio, copio. Esse brinquedo foi uma senhora que me perguntou se eu fazia os bonequinhos que pulam. Ela pediu. Fiz o primeiro, e não pulava de jeito nenhum. Trançava de um jeito, trançava do outro, e ele não pulava. Comecei a estudar e percebi que o segredo dele está todo na linha de cima. Agora não erro mais. Todos que faço pulam. Esse mês já vendi 35 bonequinhos desses”, diz, sorrindo, o homem que aos 70 anos fica parado, sob o sol, apertando as duas finas hastes de madeira enquanto o boneco trapezista pula de um lado para o outro. “Sou aposentado. Trabalhei até os 47 anos. Daí para frente continuei trabalhando, mais 20 anos. Há dois anos mais ou menos, entrou essa crise, e ficou mais difícil para eu arrumar serviço. Com 70, fica mais difícil ainda. Como o dinheiro do INSS nunca dá mesmo, porque já é pouco, me surgiu a ideia de fazer esses artesanatos. Vi na televisão uma mulher falando que passava nessas caçambas, apanhava sucata e transformava para vender. Pensei: se ela faz, eu também posso. Não faço igual, mas posso fazer parecido. Minha mulher gosta de fazer as flores, eu faço os brinquedos. Já tem mais de um ano que estou aqui. Também vendo na Feira da Avenida Brasil, nas margens do Rio (Paraibuna) e na Feira do Santa Luzia. Na parte da manhã, fico fabricando o que eu vendo. Não dá para complementar muito, mas dá para fazer uma feira, comprar uma carne”, conta ele, pintando um retrato cruel do tempo. Uma fotografia desvanecida de um vendedor de bonecos trapezistas que, na vida, precisa ser equilibrista.
Esconde – esconde
Laurides nasceu em Matias Barbosa. Só nasceu, garante. “Meu pai, na época, foi para Santos Dumont e lá separou-se da minha mãe e veio para Juiz de Fora. Eu tinha 5 anos”, conta ele, que permaneceu ao lado do pai e das duas irmãs mais velhas, sem sequer receber visitas da mãe. “Passei mais de 20 anos sem vê-la. Quando eu me casei, com 26, minha irmã cismou de procurá-la em Santos Dumont. Vi minha mãe naquele tempo e depois nunca mais. Hoje não sei se ela é viva ou não. Só tenho a recordação dela até eu completar 5 anos”, emociona-se, engolindo seco para responder se sentia saudades. “Não sei. Acho que não sentia porque meu pai dava muita assistência. Criou a gente com muito sacrifício e nunca entrou em detalhes sobre o porquê de ter se separado. E a gente nunca perguntou. Minha mãe, por sua vez, nunca procurou a gente.” O pai, falecido há cerca de duas décadas, era cozinheiro e chegou a trabalhar em casas grandes como a Churrascaria Palácio e o Faisão Dourado. Os amores vinham e iam. “A primeira mulher que ele arrumou depois da minha mãe viveu com a gente por uns tempos, mas cismou de ir embora e levou tudo o que tinha dentro de casa. Ele ergueu outra vez, arrumou outra, que também foi embora e levou tudo, deixou só duas panelas e não deixou prato, nem fogão, nem nada para a gente comer. Nessa época, eu tinha 14 anos, a gente já trabalhava e conversou com ele. Compramos as coisas e arranjamos outras. Ele não arrumou mais.”
Cabra-cega
Laurides começou a trabalhar cedo, cedo, aos 8. “Naquele tempo, eu engraxava sapatos. Morava em Santa Luzia e tinha a igreja que passava filmes de faroeste, bang-bang, ‘Zorro’. Depois dos filmes, passava uma série, que era um pedaço de filme que eles picavam para passar ao longo do mês. Eu queria ir, mas meu pai não tinha condições de me dar dinheiro. Então pedi a ele para fazer uma caixa de engraxate para mim. Comecei a trabalhar e passei a dar dinheiro para ele. Tirava para ir ao cinema, para comprar gibi, e o que sobrava era para ele. Depois passei a vender jornal. Passou um tempo, e meu pai arrumou serviço para mim no bar Primavera, onde ele trabalhava, na Galeria Bruno Barbosa. Mas não deu certo trabalhar com ele, porque, se eu quebrava um copo, ele achava ruim, o patrão não achava, mas ele criava um caso danado. Saí do bar e fui trabalhar na fábrica de papel (Paraibuna Embalagens). Fiquei 18 anos. Comecei nos serviços gerais e saí como encarregado de produção. Fui trabalhar na Mendes Júnior, de montador de estruturas. Fiquei mais dois anos e fui para a Ferreira Guimarães, no Morro da Glória. Trabalhei lá 12 anos, como mecânico de manutenção. E aí me aposentei. Mas, quando saí, fui ser segurança em mercado, mais tarde num posto e num abrigo. Quando não achei mais nada, vim parar aqui”, enumera.
Cabo de guerra
Laurides perdeu a ponta dos dois maiores dedos da mão direita ainda jovem. “Trabalhava numa máquina que esmagou os dois. Tinha uns 22 anos. Quando eu colocava o papel, tinha que avisar um colega para ligar a máquina. Mas um dia, antes de eu mandar, ele ligou. Aí beliscou meus dedos. Não teve jeito. Doeu bastante. A médica achou melhor amputar”, conta, mostrando a mão, com dois dedos com apenas uma das três falanges. Pouco tempo depois, Laurides casou-se com Maria Aparecida. Dez anos mais tarde, nasceu o único filho, Leandro Antônio. Diferentemente do pai, que estudou até o quarto ano primário, Leandro concluiu o ensino médio e tornou-se vigilante. Ainda não deu netos a Laurides, que durante horas fica a apertar as hastes do boneco trapezista que vende a R$ 10. Existem dias, porém, que o que chega à esquina volta para casa. Mas uns dias compensam os outros. “O que a gente quer mesmo, com o pouco que ganha não consegue”, responde o senhor quando questionado sobre o que espera da vida. “A casa em que eu moro é herança da minha esposa. Então, isso não precisei comprar. E eu nunca tive ambição de ter outras coisas, não. Tendo para comer e comprar uma roupinha, está bom. A gente não é rico, mas graças a Deus lá em casa tem televisão, geladeira, sofá, tudo arrumadinho.” Laurides diz e sorri como se tivesse absorvido toda a leveza dos brinquedos que cria, pintando um retrato simpático do equilibrista resiliente.