Festival Internacional de Música Colonial começa neste domingo

Atempo abre um dos mais tradicionais eventos culturais de Juiz de Fora


Por Júlio Black

22/07/2017 às 17h08- Atualizada 22/07/2017 às 17h09

Em nossa crença, algo ignorante de que o universo é centrado no indivíduo, costumamos ter no que é contemporâneo ou pertencente ao passado próximo as nossas referências estéticas, como se nada mais possa ter existido. É assim, por exemplo, na música, em que a canção popular do século XX é referência quase única para apuração de nossos gostos. No máximo, para os amantes da música clássica, o que foi produzido a partir do século XVIII. Em atividade desde 1992, o Conjunto Atempo mostra que há muito mais que três ou quatro acordes a serem ouvidos: o grupo se dedica à pesquisa da música medieval e vai apresentar parte deste trabalho neste domingo (23), às 20h, no Cine-Theatro Central, no concerto de abertura da 28ª edição do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. Esta será a primeira atração de uma série de eventos que acontecem até o próximo domingo entre concertos, oficinas e palestras, tudo com entrada franca.

Rita Cabus é responsável por tocar o clavicymbalum (cravo medieval)

Neste domingo, o Conjunto Atempo (formado por Pedro Hasselmann Novaes, Rita Cabus e Alcimar do Lago Carvalho) vai apresentar o programa “Cantilena instrumental”, interpretando peças instrumentais e vocais da França, Itália e Espanha compostas entre os séculos XII a XVI. Um dos diferenciais é que o espetáculo segue a teoria criada ainda no século XIII pelo músico e teórico Jean de Grouchy, para quem as melodias de canto – também conhecidas como cantilenas – poderiam ser tocadas apenas de forma instrumental, por meio da viela de arco e outros instrumentos comuns à época. Segundo Pedro Hasselmann Novaes, o concerto terá um programa reformulado e ampliado para o festival, com uma grande variedade de instrumentos de sopro e percussão, além da inclusão pouco usual de instrumentos de tecla da época medieval, como o cravo medieval (também conhecido como clavicymbalum e antecessor do instrumento utilizado no período barroco), o primeiro construído no Brasil, e o órgão portativo.

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Ainda de acordo com Pedro, o Atempo é um dos poucos conjuntos a se dedicar à música medieval, aprofundando-se na pesquisa de composições, repertórios e instrumentos da época, o que leva ao resgate de instrumentos como o órgão portativo e o cravo medieval. “A redescoberta do cravo medieval é coisa de poucos anos, enquanto o órgão portativo voltou a ser utilizado há mais tempo. Porém, é raro encontrar um programa com dois órgãos portativos, sendo um grave e um agudo”, destaca, lembrando que um dos instrumentos será tocado por Félix Ferrà, músico convidado para a apresentação.

Félix Ferrà é o músico convidado para o concerto deste domingo

Ele comenta ainda a respeito da versatilidade do instrumento musical em relação aos órgãos que costumavam ser utilizados nas igrejas. “O portativo é a mesma pessoa que toca as teclas e maneja o fole, então existe a possibilidade de uma dinâmica em que o músico pode jogar mais ar para o instrumento, enquanto os órgãos tradicionais de igreja têm um fluxo constante”, explica Pedro.

Pesquisa profunda

O repertório do Conjunto Atempo é formado por canções medievais originalmente instrumentais, mas também as melodias de canto que poderiam ganhar versões instrumentais, adaptadas pelo próprio grupo, que a partir dessa base pode criar melodias próprias que servem como introdução ou contraponto, dando às músicas a “cara” dos artistas, mas seguindo as técnicas polifônicas da época. “Nosso trabalho é de interpretação, e não de compositor”, ressalta.
Pedro explica, ainda, que o trabalho de pesquisa em relação à música medieval se dá em várias frentes. Ela vai da procura por instrumentos antigos à afinação, pois muitos instrumentos preservam tradições de séculos, passando pela transcrição das canções. Ele ressalta que é preciso acessar os manuscritos para saber exatamente como tocar cada instrumento, mas mesmo assim eles não fornecem todas as informações sobre como tocá-los. “Aí é preciso buscar a tradição oral, ainda viva em muitas culturas. E a questão da afinação é importante, pois ela é diferente da atual ou da do período barroco, por exemplo, em que os intervalos são valorizados de forma diferente.”

 

 

 

 

Perdidos com o passar dos séculos

Como a reprodução em série de obras de arte só se tornou possível, e ainda num ritmo inicialmente lento, a partir da criação da prensa de tipos móveis de Gutenberg em 1450, a música medieval que chegou até nossos dias sobreviveu graças aos poucos manuscritos da época ou pela tradição oral. Isso faz com que parte considerável dessa produção tenha se perdido com o tempo, tanto por conta de manuscritos perdidos ou pela perda da tradição de se passar conhecimento de forma oral para gerações futuras. Pedro acredita, por isso, que a maioria do material que “sobreviveu” já foi encontrado. “Acredita-se ainda que muitos desses manuscritos foram feitos mais para catalogação do que para leitura direta, pois a tradição oral era muito mais forte que na nossa cultura atual. A memória das pessoas era trabalhada de outra maneira.”

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Mais difícil ainda, lembra, é encontrar referências para recriar os instrumentos da era medieval. Ele dá como exemplo a flauta doce elblag utilizada pelo conjunto, produzida a partir de um exemplar encontrado em um sítio arqueológico há poucos anos e que acredita-se ser originária do século XV. “Há muito a ser resgatado em termos de instrumentos antigos. É um trabalho multidisciplinar que leva anos, esperamos trazer instrumentos e timbres ‘novos’ a partir da pesquisa que os construtores realizam. O problema é que há poucos instrumentos – ou partes deles – que sobreviveram aos séculos, então parte da pesquisa é feita a partir de fontes iconográficas”, diz ele, ao mesmo tempo em que reconhece a dificuldade em saber até que ponto a reprodução de instrumentos e composições são fiéis aos originais.

Pedro Novaes é especialista em instrumentos como a viela de arco, flauta doce elblag e gaita de foles

Para finalizar, Pedro Novaes fala sobre a experiência de levar para o público do século XXI composições criadas há centenas de anos, com aspectos históricos, sociais, religiosos, políticos e econômicos tão diferentes. “O contato com o público é fundamental para diminuir essa distância. Explicamos algumas coisas sobre a música antes de cada execução, mas sem ser didático. Acreditamos, ainda, que algumas músicas, por associação com a dança e a canção, talvez tenham uma apelo especial para as pessoas, afinal há um fundo histórico nelas que podemos reconhecer hoje. São os casos das canções de amor dos trovadores medievais e da dança, que era muito forte na Idade Média e continua aí. É uma aventura estimulante para nós, muitas vezes incerta, mas que entendemos porque amamos essa música, então buscamos fazer da melhor forma possível.”

 

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