Ao encontro de Lázaro
Quando Leonilson bordou “Lázaro” em uma das peças de tecido da “Instalação sobre duas figuras”, referia-se a Lázaro de Betânia, o personagem bíblico do “Evangelho segundo João” que Jesus havia ressuscitado. Angustiado pelo desenvolvimento do vírus HIV, identificado em 1991 e que lhe acometia sobremaneira, o artista cearense radicado na capital paulista discursava acerca da imortalidade.
Meses antes de inaugurar a exposição na Capela do Morumbi (São Paulo), uma das mais elogiadas de sua carreira, Leonilson deixou que a arte lhe contasse sobre a imortalidade, já que a vida só lhe restava em fim. Para uma de suas maiores pesquisadoras, a crítica de arte Lisette Lagnado, no período entre a descoberta da doença e sua despedida, o artista produziu obras fundamentais para a compreensão da arte contemporânea brasileira.
Leonilson pintou, desenhou, bordou e esculpiu mais de três mil trabalhos, finalmente reunidos num catálogo raisonné que o Projeto Leonilson lança no dia 28 de maio, quando completam-se 24 anos desde sua morte. “É o resultado de um trabalho que fazemos desde que ele se foi, sempre na esperança de publicar. O momento foi certo, aos 60 anos dele, quando houve um amadurecimento de toda a pesquisa”, comenta Ana Lenice, irmã do artista e presidente da organização que cuida do legado de Leonilson.
“Quando o Leo morreu, tínhamos as obras que ele deixou num ateliê, em Pinheiros, e precisávamos desocupar, para levar para Vila Mariana. Era uma quantidade de obras muito grande. E a família estava sem saber o que fazer. Alguns amigos estavam preocupados com o que a família faria. Então, tivemos conversas, orientações, e, em setembro, quatro meses depois da morte dele, montamos o projeto”, conta Ana Lenice. “Tínhamos que ter um objetivo, porque estávamos perdidos. Então, a ideia foi fazermos um catálogo raisonné. Começamos catalogando colecionadores, depois, obras e exposições.”
Entre inéditos e trabalhos já conhecidos, a exposição “Leonilson: arquivo e memória vivos”, em cartaz no Espaço Cultural da Unifor, na cidade natal do artista, reúne 120 das obras presentes na publicação, produzida, inicialmente, pela editora Cosac Naify, que encerrou suas atividades em dezembro de 2016. Novas pistas para a compreensão de um autor essencialmente confessional e filosófico, que, como Lázaro, encontrou a imortalidade bordada. Não a infinitude do corpo, aos moldes do homem de Betânia, mas a do pensamento.
“Apesar de ele ter morrido há tanto tempo, vemos jovens muito interessados na obra dele. Ele é um artista que conseguiu ficar atual”, pontua Ana Lenice, referindo-se a uma geração que, cada vez mais, interessa-se por discursos afetivos e emocionais, como os jovens Francisco Brandão (autor da instalação de penas no Calçadão da Halfeld) e Matheus de Simone (com exposição em cartaz no Instituto de Artes e Design da UFJF), nitidamente influenciados por Leonilson. Ainda, artistas de outra geração, como Valéria Faria e Priscilla de Paula, ambas professoras da universidade, também bebem na fonte do cearense.
Quase compulsivo
Característica de um fazer do presente da arte visual, o discurso em primeira pessoa, a passionalidade que enfoca muito mais o processo do que o resultado está sintetizada em toda a produção de Leonilson. “Ele dizia sempre que a obra era um retrato dele. Não fazia obra para comercializar, mas para se expressar. Tinha essa noção de autorretrato. Algumas eram claras, e ele colocava idade, peso e outros dados. Em outras, dava para sentir as relações que tinha”, analisa Ana Lenice.
“Já pegávamos o Leo desenhando desde quando era bem pequenininho, 3 ou 4 anos. A primeira obra que tem dele na exposição é de 1971, aos 14 anos. Ele trabalhava assiduamente. Tinha dias em que chegava em casa e minha mãe falava que ele estava com cara de cansado. E ele dizia: ‘Mãe, hoje fiz cinco desenhos e não conseguia parar de desenhar’. Era uma coisa quase compulsiva”, recorda-se a irmã.
De acordo com a principal guardiã da obra de Leonilson, ele sempre andava acompanhado por cadernos, lápis ou aquarelas. “Em viagens era a mesma coisa. Tanto que temos trabalhos do Leonilson em todos os lugares para onde foi. Tem obras dele em Amsterdam, Nova York, Espanha. Ele não parava. Nem por isso deixava de ter amizades. Era uma pessoa muito sociável, tinha muitos amigos e adorava cinema, para onde ia quase todos os dias.”
Emocionantes, os bordados do artista, que ganham nova potência ao serem compreendidos, também, como gesto, representam uma das faces da contemporaneidade, que valoriza as artesanias cotidianas. “O Leonilson começou a fazer alguns bordados muito cedo, mas não era frequente. Em 1990, 1991, ele começou a trabalhar assiduamente com isso. Acho que tinha o exemplo na minha mãe, que era bordadeira. Ele foi se interessando, mas era muito dele. Às vezes, a gente dizia que estava malfeito e ele falava: ‘É o meu jeito, é como quero, é como gosto’. A minha mãe bordava frente e verso e não dava para saber o que era um lado e o que era o outro e dizia: ‘Meu filho, você não tem vergonha de mostrar um trabalho desses? Com um ponto pequeno e outro grande?'”, ri Ana Lenice.
Afetos guardados
Bastante raro no cenário artístico contemporâneo brasileiro, o catálogo raisonné de Leonilson indica, ainda, a força do projeto que carrega o nome e o trabalho do artista. Considerado uma das principais instituições do país, o Projeto Leonilson conserva, na verdade, o que é pleno em afeto – tanto o afeto que o artista imprimia em suas obras, quanto o afeto que a família imprime em suas recordações.
“Trabalhar no projeto é o modo de eu tê-lo vivo comigo. É como me relaciono com ele. Quando tenho alguma dificuldade, digo: ‘Ai meu irmão, me ajuda, porque estou aqui para trabalhar para você’. OU então digo: ‘Poxa, dê uma informação precisa! Não nos faça ficar procurando, procurando!'”, brinca a presidente da organização, pontuando as muitas e constantes dificuldades enfrentadas.
“Passamos por períodos. Há momentos em que é preciso vender uma obra para manter o projeto. Atualmente estamos numa fase mais fácil em função do catálogo, que é patrocinado. Deu um respiro. Cada vez que vendemos uma obra é um sofrimento, porque existe o desejo de, no futuro, transformar tudo isso num museu. E cada obra que a gente vende é uma obra que perdemos para o museu”, lamenta.
Segundo Ana Lenice, a realidade da preservação de heranças artísticas no país é a mesma para diferentes casos. “Está todo mundo no mesmo barco, ninguém tem mais facilidade. Todos são batalhadores. Algumas vezes já conversamos com a Funarte (Fundação Nacional de Artes) para conseguir manutenção. Juntamos grupos de vários herdeiros, mas tudo é promessa”, comenta ela, para logo dizer do artista que vive em sua obra, em seu projeto, em seu ofício e em seu sonho: “Nosso único patrocinador fixo, mesmo, é o Leonilson.”