Gerações com câmeras nas mãos
À primeira vista pode parecer inusitado: em meio a casarões centenários, ruas e estradas repletas da história nacional, uma gigante tenda apresenta o que há de mais novo na cinematografia brasileira. Não fosse o gesto longevo, poderia soar contraditório, mas, passados 20 anos, a Mostra de Cinema de Tiradentes ajuda a escrever outra história. Em sua 20ª edição, o festival confirma sua vocação para formatar a narrativa recente das telonas do país, de Norte a Sul, dos grandes centros às bordas, dos veteranos aos entusiastas.
Num momento que conjuga extremos – a celebração de duas décadas de atividade e a tensão de um cenário obscuro político e economicamente no país -, o festival usa como tema um discurso que sempre foi seu: “Cinema em reação/Reinvenção na crise”. Seja defendendo formas de produção e cinematografias preteridas pelo cinema comercial, seja revelando novos nomes e novas escolas, a mostra apresentou, em sua trajetória, outras vias para a arte brasileira.
“O cinema é uma forma em reação. Quando na ficção se grita ‘ação’ no set, o que sucede o comando são reações (dos atores, da equipe), por sua vez, resultantes de uma produção/planejamento e de uma roteirização/intencionalidade. O cinema desde sempre carregou em muitas de suas manifestações uma evidência de seu desejo de agir/reagir. De alguma forma, de intervir na vida, para contrapor ou para conservar”, defende o curador do evento, o crítico de cinema Cléber Eduardo, em apresentação da temática.
Protagonista no processo de expansão do turismo na cidade histórica, o festival também aponta para a potência da cultura diante de outros cenários para além do artístico. “O evento que começou sua trajetória exibindo filmes brasileiros numa lona de circo, no Largo das Mercês, tornou-se um espaço enriquecedor de exibição e discussão do cinema brasileiro contemporâneo – um exemplo que já impulsionou novas iniciativas em Minas e no Brasil. Testemunhou o surgimento de nova geração de realizadores e favoreceu a visão de conjunto. Permitiu visualizar novos rumos, cresceu e renovou-se”, pontua Raquel Hallak, coordenadora da mostra.
De Helena a Leandra
Pela Mostra de Cinema de Tiradentes transitaram gerações distintas. Do Cinema Marginal de Helena Ignez, que fez história ao lado de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, a estreantes como Leandra Leal, atriz que já trabalhou com Murilo Salles e Bruno Safadi, o festival sempre desejou explorar o novo que não passa por marcações do relógio. Homenageadas nesta edição, Helena e Leandra, portanto, exemplificam o recorte contemporâneo do evento.
Enquanto a sessão de abertura apresenta o longa-metragem de Leandra na direção, “Divinas divas”, sobre a geração de travestis que ganhou notoriedade no país na década de 1960 (Rogéria como uma das maiores expoentes), o segundo dia exibe o último filme de Helena, “Ralé”. Dialogando com o filme de abertura, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira faz o show do primeiro dia, também no Cine-Tenda. Formado por duas vocalistas transexuais, Assussena Assussena e Raquel Virgínia, além do guitarrista Rafael Acerbi, a banda paulista foi criada em 2011, mas tornou-se amplamente conhecida em 2015, com o disco de estreia “Mulher”, todo baseado em compreensões expandidas (e feministas) do termo mulher.
No segundo dia, o tom político e social continua a marcar a mostra, seja com a intervenção do polêmico coletivo carioca Opavivará!, com suas discussões acerca das democracias, seja com a exibição do curta juiz-forano “Feminino”, de Carolina Queiroz. Na mesma sessão, outra produção juiz-forana tem espaço, o curta “Primeiro ensaio”, de Daniel Couto. Às 20h, o Cine Tenda recebe o filme “Mulher do pai”, de Cristiane Oliveira e, uma hora depois, na praça, Beto Brant e Camila Pitanga exibem seu documentário “Pitanga”, sobre o ator e militante Antônio Pitanga, pai da atriz.
Um dos títulos mais aguardados do festival, “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé, ganha sessão de pré-estreia às 22h, na tenda. A história retrata a chegada de refugiados ao Brasil que, juntos com trabalhadores sem-teto, ocupam um velho edifício abandonado no Centro de São Paulo. Num dia a dia de tensão e tristeza, cada um se desnuda. Reunindo atores e não-atores, deixa dúvidas ao transitar entre o documentário e a ficção. A diretora, por sua vez, defende que tece, apenas, uma narrativa ficcional. Para o espectador, no entanto, uma verdade nua e crua. “Não há como não valorizar o fato de ter humanizado um grupo de pessoas muitas vezes maltratadas ou ignoradas pela mídia. Não estamos diante de vagabundos. Estamos diante de pessoas sonhando com uma melhor condição de vida”, aponta o crítico Lucas Salgado, do portal especializado AdoroCinema. Exibido em cinco festivais, recebendo oito prêmios, “Era o Hotel Cambridge” é resultado da mesma ousadia de que lança mão a mostra na cidade histórica.
MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Abertura nesta sexta, às 21h. Programação diária, até dia 28. Confira a agenda completa em mostratiradentes.com.br.