Janeiro branco


Por Júlia Pessôa

15/01/2017 às 07h00

Se eu dormir, vou morrer… se eu dormir, vou morrer… se eu dormir, vou morrer. Tantas vezes fui assombrada pelo pensamento, no meio da noite, me mantendo acordada, alerta, convicta de que esta seria minha única chance de sobrevivência. O coração palpita por todo o corpo: na palma da mão, no topo da cabeça, na garganta, no dedão do pé. Cada pedacinho de mim tenta ajudar na missão de permanecer acordada, já que dormir parece uma iminência tão certa da morte. Meu corpo, exausto de atender aos chamados do que eu sentia, pede arrego e se manifesta: dor no peito, sufocamento, respiração invariavelmente ofegante… Em muitas madrugadas, o conforto só vem em ouvir, já no hospital, o diagnóstico que eu mesma havia me dado racionalmente: “Foi nada, é emocional” – não raramente sob um olhar de desprezo e impaciência de quem me atendeu.

Esta não é uma obra de ficção. Na primeira vez em que tive uma crise de pânico, tinha 19 anos. Tive certeza de que morreria. Foram alguns episódios até o diagnóstico, transtorno de ansiedade, que na época me soou como uma sentença. Ignorante absoluta sobre transtornos de ansiedade e pânico, tive medo de enlouquecer, de ser medicada com remédios que me transformassem em uma distante versão de mim, de me tacharem de fraca ou fresca, ou de ser alvo de pena. Medo de sentir todo aquele medo incontrolável e inexplicável novamente (o que só me deixava mais ansiosa).

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Ainda que um pouco relutante, fiz o que tinha que ser feito: tomei remédio, fiz terapia e entendi que o organismo de alguns de nós, como eu, pede socorro quando humanos que somos, não conseguimos processar a vida em toda sua complexidade. Hoje tratada, consigo ver a doença como parte do que sou, algo que pode aparecer a qualquer gatilho: uma perda, uma grande mudança na vida, o anseio ou medo de que algo aconteça, uma oportunidade transformadora. Só que hoje não tenho medo de que ela venha. Como sempre, o conhecimento foi libertador. Tenho meu remedinho guardado em casa, e sei que posso tomá-lo caso uma crise ameace se aproximar – o que normalmente já a afasta.

Muito tenho visto nas redes sociais sobre o “Janeiro branco”, campanha que visa a conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre transtornos mentais, iniciativa louvável e urgente. Mas muitos posts reforçam, na minha opinião, a ideia de que “quem tem um ombro amigo, não precisa de terapia”, o que não se aplica a quem tem este tipo de doença. Mais do que bancar o terapeuta “abrindo suas portas”, como anuncia a publicação bem-intencionada, vale muito mais dar apoio para que se busque ajuda profissional e, se necessário, medicações.

É preciso muito pouco para ajudar. É só não minimizar a dor. Não dizer “fica calma que passa”, “cuidado com estes remédios”, “isso é invenção, antes não existia”, “você precisa se esforçar”, “também fico nervoso”, “seja racional”, “tarja preta é coisa pra gente louca”. Diga à pessoa que ela não está (ou vai ficar) doida, nem vai ser anulada por uma medicação. Na verdade, falar é quase sempre desnecessário. Basta estar ali. Basta se sensibilizar. Basta não ser babaca.

Demorei muito tempo para perder o medo e a vergonha de falar sobre minha doença, que – hoje sei – não me faz mais fraca ou mais fresca. Agora percebo que em cada dia de silêncio meu, muitas Júlias podem ter virado a madrugada com medo de morrer, certas de sua solidão diante da impotência em controlar o que sentiam. Minha privacidade vale muito menos que o conforto de hoje poder dizer a cada uma delas, assustadas e estáticas em cima de suas camas: você não está só. Em janeiro ou pelo resto da vida.

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