Internação poética compulsória
(Quase) todo artista leva para sua obra experiências vividas, histórias que presenciou, ouviu ou acompanhou. Sentimentos que buscam expressar uma necessidade de externar algo que pode não ter um nome definido, mas que está ali exigindo que o mundo saiba que existe. Que possa ser compartilhado, provocar alguma reação, questionar, fazer rir, chorar, refletir. E assim olhar para nós mesmos assim. Assim é com o poeta e escritor Iacyr Anderson Freitas, que realiza nesta terça-feira, às 20h, no Bar da Fábrica, o seu mais recente livro, “Estação das clínicas”, publicado por meio da Lei Murilo Mendes. A noite terá, ainda, apresentação do cantor e compositor Luizinho Lopes.
No caso de Iacyr, a inspiração para seu novo trabalho veio de um local que poucos gostam de frequentar: o hospital. Mais especificamente, resultado dos problemas de saúde que enfrentou nos últimos dois anos, além de vivenciar a experiência das mortes de seu pai de de sua irmã, algo que ele define como “um mix de experiências”: entre elas está o acidente que sofreu em Portugal no ano passado, quando divulgava seu livro anterior “Ar de arestas”. “Eu fraturei o ombro quando tentava subir no trem com uma mala pesada e escorreguei. Tive que terminar a divulgação do livro em Portugal e na Espanha com o braço direito na tipoia antes de voltar ao Brasil, fazer uma cirurgia e voltar para a Europa. Antes disso fiz uma cirurgia há quase dois anos devido a uma diverticulite, em que precisaram tirar uma parte do intestino. Fiquei uma semana no hospital, em recuperação, foi uma recuperação lenta”, conta. “E nesse período também perdi meu pai e minha irmã.”
Foi toda essa passagem por enfermarias, salas de cirurgia, solidão, essas leituras que não conseguiam preencher o sentimento de “aprisionamento” a força por trás dos poemas presentes no livro, em que as situações que enfrentou e aquelas que presenciou ou tomou conhecimento ganham palavras fortes, graves, que eventualmente transparecem urgência, mas também carregam boas doses de ironia e humor negro. “Tive que conviver com o tema e o aparato do tema: entrar e sair do hospital, frequentar a UTI, ouvir conversas na porta de hospital. Fui compondo um mosaico de vozes com mulheres, idosos, pessoas desenganadas. Mas não quis dar um foco somente pesado, mais ‘dark’ para a coisa. Queria também, até porque isso existe, um certo humor negro, uma sátira; há muitos focos temáticos”, acredita.
Iacyr explica, ainda, que a diversidade de histórias, ao tomarem a forma desse mosaico de eventos, fez com que decidisse separar os poemas de “Estação das clínicas” em três partes: “pré”, “in”, e “pós”, representando o pré-operatório, a internação e a cirurgia e a recuperação – para quem passou da “segunda fase”. “Até os diálogos são diferentes em cada parte – como na fase de internação, com o estranhamento de você sair da sua casa e ir para um local em que o calor humano é baixo, ou a parte posterior, com pessoas que falam da perda de seus parentes, daqueles que escaparam mas terão novas internações…” Dentre as histórias que presenciou, Iacyr lembra da ocasião em que, do seu quarto, ouvia pessoas do lado de fora chorando a morte de um parente, provavelmente do quarto ao lado, descrita em “Fusões a frio”. “Era um paradoxo, pois era um dia bonito, de sol e céu azul, em que estava me recuperando e até poderia ir lá fora para passear.”
“O hospital nunca é fácil, mesmo que você vá por causa de boas notícias, como um nascimento”, acrescenta. “Não é agradável. A gente quer sair dali o tempo inteiro. Nós, que estamos ali de passagem, queremos sair o tempo todo, mas há pessoas que têm que conviver com essa situação. Usei personagens que conheci, dos quais ouvi casos, para compô-los”, diz o escritor, lembrando os casos do paciente que não tinha mais veias para que fizessem os exames de sangue em “Da arte de fugir”; a conversa do médico com o agente funerário em “Resta saber”; ou o seu calvário particular em “Fábula hospitalar de João e Maria”, em que relembra a distância que parecia interminável entre seu quarto e o centro cirúrgico.
Considerando-se um “otimista inveterado”, Iacyr não acredita que isso tenho mudado sua forma de escrever ou até mesmo provocado alguma reação radical na forma com que encara o mundo. O novo, para ele, foi viver o cotidiano hospitalar e encontrar com pessoas que vivem isso diariamente.
“Encaro a vida da mesma forma que antes, mas vejo agora que precisamos estar preparados. “A população brasileira está envelhecendo rápido, então temos que estar prontos para essa coerção da idade. É preciso pensar no hospital como extensão da casa em certos momentos. Passei a ter essa visão a partir de então, de saber que preciso suportar essas situações, como ser acordado para tomar o remédio no meio da madrugada, ter o mal-estar, a vontade extrema de não estar ali. Isso me deu uma certa paciência, que a vida vai nos ensinando aos poucos. Essas passagens foram como um aprendizado para me acostumar ao fato de que um dia vou entrar e não sair.”
Ou como diria o próprio poeta:
“o que já foi não conta
o que virá não conta
e o resto
é resto”
Lançamento do livro de Iacyr Anderson Freitas, 6 de dezembro, às 20h, no Bar da Fábrica (Praça Presidente Antônio Carlos s/nº)