Quando Minas é o mundo


Por Tribuna

30/10/2016 às 07h00- Atualizada 30/10/2016 às 15h28

Distante da imagem bucólica, dos campos vazios e das vacas pastando, Minas Gerais é contemporânea. Longe dos arranha-céus e dos painéis de LED, Minas Gerais é chão de terra. Perto das linhas de trem e dos rios, Minas é lugar de conflitos, conceituais e práticos. Ainda que pelo viés da ficção, os amigos Luzimar e Gildo refletem o espaço das contradições, quando, num Natal, se encontram após anos de separação. Da infância das peladas, restou pouco: Gildo foi para São Bernardo do Campo, em São Paulo, forjar sua vida de sucesso, enquanto Luzimar permaneceu na Cataguases natal, trabalhando numa fábrica de algodão. Entre memórias, os dois avaliam suas escolhas e se deparam com uma tragédia que os une. Um redemoinho de sentimentos a dizer que sair e ficar são apenas “dois lados da mesma moeda”, como já diria “Encontros e despedidas” do mineiro Milton Nascimento.

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Baseado em “Mundo inimigo”, segundo livro da pentalogia “Inferno provisório”, de Luiz Ruffato, o filme “Redemoinho”, que acaba de estrear em festivais, com expectativa de chegar às salas comerciais já em dezembro, faz um mergulho pelas Minas das realidades brutas e sensíveis. Com assinatura de José Luiz Villamarim, o longa-metragem bastante aguardado pelo meio audiovisual rompe, como é o costume do cultuado diretor por trás de “Avenida Brasil”, “O canto da sereia” (2013), “Amores roubados” (2014), “O rebu” (2014), “Justiça” (2016) e a atual “Nada será como antes”, todas produções globais com altas doses de inovação.

“Televisão e cinema são suportes diferentes. Não gosto de dizer que quando a televisão é boa, parece cinema. Não existe isso. Existe a televisão benfeita e a malfeita. Já o cinema conta com outro ritual, que está acabando, de ter o espectador numa sala escura, com uma tela grande. Há o exercício da síntese, já que dura cerca de uma hora e meia. O cinema que admiro é o do avanço”, pontua Villamarim. “Faço o que acredito. Tento, de alguma maneira, discutir a gramática, a narrativa, buscando a simplicidade. Não parto do ‘vou inovar’. Não dá para trabalhar assim. Tem que fazer o que te interessa para, assim, discutir linguagem. Estou interessado em fazer trabalhos que signifiquem.”

A alma dos invisíveis

Vencedor do Prêmio Especial do Júri e na categoria melhor ator (para Julio Andrade) do Festival do Rio deste ano, “Redemoinho”, chega à telona arrebanhando tão grandes elogios quanto os que o diretor José Luiz Villamarim colhe por sua atuação na telinha. “Saí do cinema impressionado, mas impressionado com a estética. Esse cara sabe filmar. A chuva, o trem, as máquinas na fábrica. O som ao redor”, escreveu o crítico de cinema do jornal “O Estado de S. Paulo”, Luiz Carlos Merten. O segredo? Como na literatura de Luiz Ruffato, Minas é vista em carne. Minas, assim, é Brasil e é mundo.

“Essa é a Minas árida, dura, seca, sem perspectivas. É a Minas da migração, de achar que em São Paulo ainda vai encontrar o Eldorado. É uma Minas sem bucolismo nenhum, que existe, está em nossa cara e não vemos. É importante falar dessa Minas da beira de uma estrada de trem, com trem passando na cabeça das pessoas de quatro em quatro horas ou sofrendo enchente do Rio Pomba”, diz o diretor, como a complementar o adjetivo que Luiz Ruffato utilizou logo ao término de uma exibição: “um filme necessário”.

Revelando mães sofredoras, bêbados andarilhos e trabalhadores comuns, como a maior parte dos brasileiros, o filme expõe um país em sua profundidade. “Estava interessado em fazer um trabalho no que chamo de contracampo. A gente tem filmado muito o campo ou a favela, mas não filmamos personagens da classe C, ambiciosa e desejosa de avançar e ter qualidade de vida, que é a cara de Cataguases e da literatura do Ruffato. Não se trata de luta de classes, mas de uma questão existencialista. Queria tratar da alma dessas pessoas, pessoas invisíveis”, comenta Villamarim, que teve o apoio do Polo Audiovisual da Zona da Mata de Minas Gerais nas filmagens feitas em Cataguases e Miraí durante dois meses de 2014.

O lugar que reconheço

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Irandhir Santos interpreta filho de Cássia Kiss Magro (Foto: Divulgação)

“Hoje, o que é que você diz para o amigo aqui: é melhor ir que ficar?”, pergunta Luzimar a Gildo em certa passagem do filme. Antes de encerrar-se em resposta, “Redemoinho” parece replicar a mesma pergunta que seus criadores se fizeram em determinado momento da vida. Nascido e criado em Três Marias, região central de Minas, José Luiz Villamarim morou por sete anos em Ipatinga e, até os 28, em Belo Horizonte. Há meio século mora no Rio de Janeiro. “Quando a gente vai trabalhar com obra de arte, acaba voltando às origens. Queria muito retratar Minas, porque saí de Minas, e Minas nunca saiu de mim. Sou mineiro, filho de uma mineira e de um piauiense, criado entre montanhas, com a literatura e a música mineiras. Para meu primeiro filme, foi bom encontrar na obra do Ruffato a Minas que reconheço.”

Para a prestigiada produtora Vania Catani, da Bananeira Filmes, também há identificação. “O resultado é, de fato, muito particular mesmo, ele tem uma coisa universal e, ao mesmo tempo, uma linguagem muito própria para quem foi educado e criado dentro dos rígidos códigos mineiros. Esses personagens do Gildo e do Luzimar de alguma maneira pareciam um pouco com a gente e com alguns amigos nossos, porque a gente também tinha migrado e a gente também tinha deixado alguns amigos para trás”, diz a mineira de Montes Claros, por trás de “O palhaço”, de Selton Mello e “A festa da menina morta”, de Matheus Nachtergaele.

Reivindicando a universalidade que parte de Cataguases com suas pontes, trilhos e rio, Villamarim acabou trabalhando com uma equipe de migrantes, como o fotógrafo paraibano Walter Carvalho, a atriz paraense Dira Paes e os atores Irandhir Santos, de Pernambuco, e Julio Andrade, gaúcho. Sem falar do parceiro pernambucano George Moura, roteirista com quem o diretor realizou seus últimos trabalhos na teledramaturgia. Baseando-se na obra de um autor como Ruffato, um dos mais ousados e arrojados escritores da literatura, George também tensiona a narrativa no cinema. “Ruffato nos deu liberdade para a adaptação. Temos uma ‘transcriação’, que é um termo dos irmãos Campos. O que o Ruffato tem, o formalismo, também está no filme. Juntamos minha identidade e o texto dele e, segundo ele, a conversa deu certo”, comemora Villamarim.

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O gênio que lemos

Projeto antigo, de mais de uma década, “Redemoinho” surgiu de uma leitura. “Há 15 anos li ‘Eles eram muitos cavalos’, a primeira obra do Ruffato a que tive contato. Encantei-me e pedi para a produtora Vania Catani comprar os direitos. No encontro que tivemos, o Ruffato me apresentou o “Mundo inimigo”, sugerindo adaptação. Adorei e começamos a produzir, trabalhando com o eixo central dos amigos e acrescentando histórias paralelas”, recorda-se Villamarim, cuja originalidade da linguagem também é apontada na obra do escritor nascido em Cataguases, formado em Juiz de Fora e reconhecido em São Paulo. “No dia em que apresentamos o filme pra ele, a gente tinha muito receio de como ele iria receber. O fato de ele ter gostado nos confortou, nos aliviou e nos alegrou muito, porque é uma responsabilidade tremenda. Ruffato é um monstro de escritor, é um gênio absoluto, acho que qualquer pessoa humana tem conexão com a literatura dele”, conta Vania. Quanto a “Eles eram muitos cavalos”, o diretor não abandonou. “Esses dias pensei em voltei a ler.”

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