Norma, sem normas


Por Tribuna

03/01/2015 às 07h00

Para a nova geração, ela foi a Deise Coturno no humorístico global “Toma lá, dá cá”. Para os mais velhos, com boa memória, ela foi vedete de Carlos Machado. Para os cinéfilos, uma das maiores atrizes do Cinema Novo. Para os cineastas, uma diretora de muita inspiração. Para os leitores de “Norma Bengell” (Editora nVersos, 352 páginas), a autobiografia póstuma da atriz, uma mulher vanguardista, que viveu sem receios. “Sou tão mortal quanto qualquer um, sou humana, da espécie dos que têm o dom de sorrir e chorar, muito além do meu dom de fazer rir e chorar. Sou invencivelmente frágil. Um sobrevivente que vive com intensidade”, escreveu ela, que não viu o livro pronto. Sua entrega a tudo e a todos não lhe permitiu que vivesse mais de 78 anos. Vitimada por um câncer de pulmão, em 2013, ela teve suas cinzas jogadas das pedras do Arpoador, em direção ao mar, logo depois de um velório esvaziado, sobrando apenas 15 pessoas no momento do fechamento de seu caixão.

Norma Bengell, a mulher que arrancou suspiros de toda uma geração, conheceu a pobreza e também as rodas mais luxuosas. Desfrutou das festas mais badaladas, mas também da casa vazia de amigos. Conquistou homens com o corpo escultural, as longas pernas, as mesmas que um dia paralisaram. “Certo dia, durante uma gravação do humorístico semanal da TV Globo, ‘Toma lá da cá’, com Miguel Falabella, ao ouvir a palavra ‘ação’ não consegui me levantar da cadeira. Não consegui mais andar. E passei a usar cadeiras de rodas. Mesmo assim, queria continuar trabalhando. E continuei gravando, mas só podia aparecer sentada. Eu ainda queria ser diretora. Afinal, poderia dirigir da cadeira. Mas todos sumiram. Todos sumiram”, conta, em tom bastante emocionado, sobre seu triste fim.

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Redigido em sequência cronológica, e totalmente fragmentado, o relato de Norma segue fluido como as memórias a que ela escolheu se lembrar. Sem meias palavras, não abre mão dos autoelogios, mas também não enfeita para esconder seus fracassos. Com um curioso álbum fotográfico de mais de 90 páginas, o livro surpreende ao revelar a magnitude e amplidão de uma artista múltipla, que gravou quatro discos durante sua trajetória, entre eles “Ooooooh! Norma”, um precursor da bossa nova.

Na cama com Alain Delon

Filha de uma família simples, com os pais vivendo intensa crise, aos 15 anos, Norma entrou para o teatro de revista. Autodidata, chamava atenção pela falta de pudores, num tempo em que às mulheres muito pouco era permitido. “As atrizes do rebolado, como eram chamadas as vedetes, foram o grande chamariz desses números musicais. Ser vedete era sinônimo de ser bonita, sensual e, em alguns casos, famosa. Ser vedete era a glória”, conta a atriz, que se inspirou nas “heroínas dos musicais da Metro” (atual MGM). O que a artista também se recorda é que ser vedete era ser marginal. Ainda assim, foi convidada para desfilar na Casa Canadá, uma das mais famosas lojas de moda do Rio de Janeiro. Foi aquela carreira de pequenas e elitizadas passarelas que lhe rendeu frutos nas artes dramáticas.

Elogiada como cantora, ela logo foi exaltada pela dramaticidade com que entoava as palavras. “Quando comecei a frequentar o grupo do Cinema Novo, me sentia muito burra. Quer dizer, eu sabia que era inteligente, ou, pelo menos, muito viva, mas não era um poço de cultura. Eu era uma moça que lutou muito e não teve tempo de estudar; tudo o que aprendi foi sozinha”, escreveu. Alçada à fama internacional por “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, com quem namorou, ela foi para o Festival de Cannes, quando recebeu o prêmio principal, e demorou anos para voltar. Intérprete do primeiro nu frontal do cinema brasileiro, ela conheceu e trabalhou com cineastas do porte de Alberto Lattuada.

Em sua estadia pela Itália, envolveu-se com o eterno galã Alain Delon. “Um romance clandestino e delirante. Não era só um caso, como com os que eu estava habituada. Era mais fresco e jovem. Nós ríamos muito de tudo, corríamos, olhávamos a lua, felizes. Tudo escondido, o que dava mais sabor. Tinha muita paixão, entrega e curtição, mas sem idealismos, sem romantismo. Amávamos um ao outro loucamente e apenas enquanto estávamos juntos. Alain era escorpiano, um amante inigualável, insaciável. Ele realmente gostava de mulher, apesar de seu comportamento ambíguo”, recorda-se a mulher que fez 16 abortos, todos declarados publicamente, e chegou a se casar com o ator italiano Gabriele Tinti.

Dias frios

Atriz de emblemáticas peças nacionais, Norma foi obrigada a depor para a ditadura militar em 1968, ano em que apresentou “Cordélia Brasil”, de Antônio Bivar, nos palcos paulistanos. Décadas mais tarde, voltaria a se desentender com o Governo, mas por conta do filme “O guarani”, que lhe custou um indiciamento pela Polícia Federal de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita, já que nas prestações de contas feitas com o Ministério da Cultura foram encontrados diversos problemas. A carreira de diretora, elogiada por “Eternamente Pagu”, de 1988, estaria terminada, bem como a fama da atriz. Com a saúde debilitada e as finanças comprometidas, a estrela foi pouco a pouco se apagando.

“A partir dos anos 1960, Norma Bengell foi a cara, o corpo e a alma do cinema brasileiro”, comenta o diretor Daniel Filho, em apresentação do livro. “Em 2012, fui a um aniversário da Norma em que havia muitos lugares para convidados, mas muito poucos presentes. Ali entendia o significado da palavra solidão”, conta o documentarista Silvio Tendler. “O texto de Norma não é apenas a narrativa das aventuras artísticas de uma menina que conseguiu furar a barreira do anonimato e saltar o muro enganoso da fama: é uma narrativa cheia de lances humanos e, poderíamos chamar, de saudável caldo humanista, em que a emoção e os sentimentos mais profundos da alma estão à flor da pele”, conclui o produtor Luiz Carlos Barreto. Sem normas, a atriz mostra, com o livro, que, acima de tudo, morreu desconhecida de todos.

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