Nick Cave e um coração a sangrar
Oi, gente.
Seres humanos são uma espécie engraçada. No Solar dos Black-Pereira, por exemplo, cada um tem sua mania quando quer deixar a TV ligada, mas sem ter que prestar atenção. A Leitora Mais Crítica da Coluna gosta de reality shows de decoração ou programas bizarros na linha Kardashians, cotidiano de anões e o inacreditável “Catfish Brasil”. Eu, por outro lado, procuro algo nos canais de música, futebol americano/esportes Lado B (curling, por exemplo) ou alguma reprise dos “Simpsons”. Foi daí que guardei uma frase do Homer Simpson (ou seria do Vovô Simpson?) que nunca esqueço: “o sonho de todo pai é viver mais que os filhos”.
Claro que é uma piada, pois basta ver a dor de tantos pais por aí quando seus filhos vão embora muito antes da hora, seja com meses, poucos anos de vida ou mesmo na meia-idade, quando alguma doença ou acidente faz aqueles que geraram a vida terem que velar os seus queridos. Agora que tenho duas vidas a zelar (as do Imperador Django e Antônio, o Primeiro de Seu Nome), o medo de passar por tal situação multiplica-se de uma forma que não podemos explicar. Até porque racionalizar tal coisa é impossível, creio eu. E então imagino como deve ter sido difícil para o australiano Nick Cave, o trovador das trevas, o sujeito de canções poderosas sobre amores desesperados, assassinos, solidão, pecadores em geral e o próprio Diabo, entregar ao mundo um álbum tão dolorosamente belo como “Skeleton tree”, gravado sob o impacto da perda de um dos seus filhos, Arthur, que morreu em 2015 ao cair de um penhasco na região de Brighton, na Inglaterra, aos 15 anos – deixando para trás um irmão gêmeo, Earl, como prova de que a dor pode ser ainda maior para quem ficou.
A morte de um de seus quatro filhos já havia rendido um documentário, “One more time with feeling”, e agora chega a vez de expiar as dores em forma de canção. Parte das músicas de “Skeleton tree” foi escrita antes da tragédia, mas a impressão que fica é de que o luto está presente em todas as oito faixas do disco. Ainda que acompanhado por sua banda de todas as horas, os Bad Seeds, Nick Cave trocou o rolo compressor sonoro de seus parceiros por um clima musical esparso, metafísico e religioso, como uma missa de sétimo dia que nunca tem fim. São órgãos, sintetizadores, pianos, melodias suaves, pequenas batidas eletrônicas que dão o tom da dor, perda e despedida de faixas devastadoras como “Distant sky”, “Jesus alone”, “Girl in amber”, “Rings of Saturn” e a faixa-título.
Nick Cave sempre foi conhecido pela sua visceralidade em álbuns como “From her to eternity”, “Your funeral… My trial”, “Let love in” e “The boatman’s call”, mas “Skeleton tree” é o trabalho capaz de rasgar a alma de quem ouvi-lo. Por isso mesmo, não é o tipo de álbum para se ouvir no ônibus, na academia ou no engarrafamento. É um convite à reflexão, ao luto, e para pensarmos na sorte de termos a nossa descendência ao nosso lado, mesmo que ela tenha três meses, dez ou 55 anos de vida. Porque o pior pesadelo de um pai é viver mais que seus filhos.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.