A eternidade em um instante


Por Daniela Arbex

28/08/2016 às 07h00

Sou apaixonada pela fotografia, pela capacidade mágica que essa arte tem de eternizar um instante que jamais será repetido. Algumas imagens ficam cravadas na memória da gente, como a do exato momento em que Kim Phuc – símbolo da Guerra do Vietnã -, corre nua durante bombardeio ao vilarejo vietnamita onde ela morava. Naquele 8 de junho de 1972, a menina de apenas 9 anos teve 55% do seu corpo queimado por napalm, um conjunto de líquido inflamável à base de gasolina gelificada muito usado no conflito armado que matou milhões de pessoas. Desesperada, a criança que comoveu o mundo gritava “muito quente”, enquanto tentava fugir de si mesma e de seu corpo devorado pela dor. Kim passou 14 meses internada lutando contra as sequelas daquele dia. Mas o registro do sofrimento dela, feito por Huynh Cong, contribuiu para colocar fim à insanidade da guerra.

Em 1993, o The New York Times publicou a foto de uma criança que, vitimada pela fome, não teve forças para alcançar o centro de alimento da ONU no Sudão. Atrás dela, um abutre-de-capuz espera pelo instante da morte. O flagrante perturbador foi feito pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, profissional que, mais tarde, foi consumido pelas memórias daquela e de outras crianças famintas e feridas na longa guerra civil que transformou homens em carrascos. Carter, que foi duramente criticado por ter ido embora da cena de sua foto sem ter ajudado aquele pequeno personagem, acabou se matando um ano depois. Não conseguiu perceber que, apesar de não ter mudado a história daquela criança, a imagem extrema da miséria ajudou a jogar luz sobre a dura realidade daquela tragédia.

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No Brasil, Luiz Alfredo, fotógrafo da extinta Revista O Cruzeiro, também fez história ao registrar em um acervo de 300 fotografias toda a barbárie que a indiferença foi capaz de produzir. Em 1961, ele saiu da redação da sucursal da revista, em Belo Horizonte, para uma pauta corriqueira. Acabou voltando com as provas do nosso holocausto, responsável pela morte de 60 mil pessoas em um dos maiores hospícios do país, o Hospital Colônia, em Barbacena.

Costumo dizer que se as fotos dele não existissem, nenhum brasileiro conheceria a forma desumana na qual homens, mulheres e crianças foram mantidas em nome da razão. Em uma das imagens mais marcantes, Luiz Alfredo registra a rotina do pavilhão Milton Campos, verdadeiro campo de concentração onde centenas de infelizes foram confinados e explorados em sua força de trabalho. Por quase 50 anos, o repórter fotográfico guardou aqueles negativos. Ao captar uma rotina de morte, Luiz Alfredo permitiu que vivêssemos para lembrar do tempo em que abrimos mão da nossa humanidade.

Há alguns dias, Mahmoud Raslan, outro fotógrafo, tirou a paz do mundo ao revelar o rosto de Omran Daqneesh, o menino sírio resgatado dos escombros de um bombardeio em Aleppo, uma das cidades devastadas pela guerra. Sangrando e em choque, a criança apenas mira a câmera que testemunharia sua dor. Com apenas 5 anos, e claramente em choque, ele não consegue chorar. Nós choramos por ele e por nossa incapacidade de aprender com a história.

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