Carta ao Noel


Por Júlia Pessôa

12/12/2014 às 07h00- Atualizada 12/12/2014 às 10h55

Ao ilustríssimo senhor Noel (de “NOEL, Papai” e não “ROSA, Noel”)

Juiz de Fora, 12 de dezembro de 2014

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Caro Noel,

Já são muitos anos, por isso dirijo-me a você sem firulas e sem a precedência do “Papai”, antes do nome, pois não tenho mais idade para isso ou filhos que justifiquem tal alcunha. Redijo esta carta pois sei que é o melhor meio de contatá-lo, já que e-mails, telefones ou aplicativos de mensagem em seu nome são desconhecidos. A praxe manda que a gente escreva se foi bom ou mau e em seguida liste nossos pedidos de presentes para o Natal. Em bom Português, é um convite a assumirmos nossos erros – porque desconheço alguém que seja só bom o tempo todo – e pedirmos penico, aproveitando o ensejo para dizer o que queremos em troca deste ato de mea culpa. É isso que faço aqui.

Como peco demais, precisei de algum sistema que pudesse organizar minhas falhas, então resolvi me ater a uma tipificação clássica. E vou te falar, Noel, em 2014 cometi todos os pecados capitais, todos!  Nem vou versar sobre a gula, porque todos os quilos a mais que ostento falam por si sós. Além da apatia para levantar-me da cama aos domingos ou de ir me exercitar, tive muita preguiça das pessoas: do povo que vinha me contar caso comprido cheio de gente que não conheço; daqueles que só me procuram quando precisam; e, principalmente de quem defende a liberdade de expressão, desde que essa manifeste uma opinião idêntica à sua. Foram muitos amigos deletados ou bloqueados nas redes sociais, muitos grupos de Whatsapp abandonados e muita gente com quem nem ousei entrar em discussão. Por que, meu bom velhinho?  Ah, deu preguiça.

Fui avarenta também, Santa Claus. Fechei a mão, o bolso e a cara para quem acha que pobreza é uma questão de escolha, até porque, ironicamente, estes costumam ser os mais canguinhas quando chega a dolorosa do bar ou restaurante. É aquele tipo que pede a cerveja artesanal edição limitada mais rara do bar, ou o prato mais caro do restaurante, e refestela-se a noite toda em suas escolhas gourmet, enquanto mortais ficam na pilsen-de-todo-dia e no tira-gosto honesto. No fim, quer dividir “tudo igual”. Mas ver a empregada andar de avião não pode. Não pago mais essa conta, São Nicolau. Desculpaê.

Tive e tenho muita inveja, algo que muitas vezes não consigo conter. Inveja de quem come, come, come e continua magro. De quem abre mão da carne para fazer sua parte na defesa aos animais. De quem foi ou está agora na Europa. Daqueles que reciclam o lixo religiosamente, sem falhar jamais. Dos que, mesmo com a vida mais atribulada que seja, dedicam parte do seu tempo, ou a totalidade dele, a ajudar os outros e fazer desse mundo, muitas vezes inóspito, um lugar melhor, agora e no futuro. Morro de inveja, e de vergonha da minha acomodação (olha a preguiça de novo!).

Vez ou outra, fui muito orgulhosa. Tive orgulho demais para pedir ajuda quando precisei. Para reconhecer que as pessoas são diferentes, e não se resumem àquilo que expressam sobre algum assunto. Fui soberba com a opinião alheia, acreditando que certos pontos de vista são tão inaceitáveis e/ou desumanos demais,  e que defendê-los faz deste alguém automaticamente um ignorante, ou uma pessoa má. Fui babaca, Noel. Às vezes não dá para segurar. E se é verdadeiro o discurso que andam reproduzindo por aí, de que mulher que “anda de decote e/ou saia curta”, “sai sem o namorado” ou “bebe em festas”, é porque “está querendo”, acho então que andei querendo bastante, Noelito, por isso põe luxúria na minha conta também.

Por fim, o que mais pesou neste ano foi a ira, Pai Natal. Vi meus olhos encherem-se de sangue quando vi, li ou ouvi gente querendo de volta um regime que matou e torturou milhares de brasileiros. Muitas crianças, inclusive. Senti fogo nas ventas a cada vez que alguém foi violentado, com porretes, lâmpadas fluorescentes ou palavras, por amar alguém do mesmo sexo. Quis chorar de ódio a cada vez que ouvi alguém dizer que uma mulher merecia ser estuprada, e mais ainda quando o senhor deputado Jair Bolsonaro afirmou que só não estupraria uma colega de Parlamento porque ela “não merecia”. Pensei que morreria de fúria quando, ao fim de uma corrida eleitoral tão marcada por este mesmo sentimento, vi que o parlamentar foi o mais votado no Rio para a Câmara. Que raiva de ter nascido nesse estado!

Para não sair do tom, esse mesmo Bolsonaro disse que o Dia Internacional dos Direitos Humanos é, no Brasil, o “Dia Internacional da Vagabundagem”. Sendo assim, por ser brasileira, e por tudo em que acredito ser justo e correto, acho que tenho ficado, Noel, cada vez mais vagabunda. E tudo que eu quero, neste Natal, é continuar deste jeito, e, se possível, ver cada vez mais gente o sendo.

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Obrigada por tudo e lembranças a Rudolph – ou para nós, brasileiros, seria “Rodolfo”?
Com carinho,
Júlia

PS: Favor encaminhar o poeminha no verso da página a seu xará, Noel Rosa. Vai que dá samba?

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