Nega véia


Por Daniela Arbex

03/07/2016 às 07h00

Peguei um táxi na Estação Pinheiros, em São Paulo, e pedi ao motorista que fechasse o vidro do carro para não atrapalhar meu cabelo. Do banco de trás, vi quando o homem deu uma risadinha e sacudiu a barriga imensa que teimava em se espalhar por cima da calça.

– Minha filha, você não tem jeito de ficar “atrapaiada”. Feia é a nega véia lá de casa, exclamou o motorista de 58 anos.

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Apesar de surpresa, não consegui conter a gargalhada.

– Moço, como o senhor fala assim da sua esposa?, eu perguntei.

– Mas é verdade, minha filha. Aquela nega é uma rã, respondeu, dando uma longa risada. Ela me chama de sapo, e eu não sei por quê.

Aquela conversa me fisgou. Queria saber mais sobre o motorista que se parecia muito com o personagem Shrek, o ogro verde mais desastrado e  simpático do mundo.

– Eu fui morador de rua por 12 anos aqui em São Paulo. Vim do Paraná depois de um casamento errado. Mudei para cá, mas não consegui emprego. Quando percebi, já estava dormindo na rua.

– O senhor ficou sem endereço por 12 anos?

– Fiquei minha filha. E conheci essa nega véia na rua. Ela tinha umas pernas que pareciam dois canicinhos. Mas a diaba me ajudou muito. Por isso, quando um policial que conheci no São Bento me apoiou a sair da rua, eu aluguei um quartinho para ela na Rua Conde de São Joaquim, em Bela Vista, e fui buscá-la. Ela logo veio com uma conversa de casamento. Deus me livre. Respondi pra ela que cada um ficaria em uma cama. Mas um dia cheguei no quartinho e vi a nega toda diferenciada. A casa limpa. Comida quente. Senti um negócio estranho e pensei: será que eu tô com ciúmes dessa muié? Ali eu vi que dava pra aproveitar alguma coisa, mesmo com a feiúra dela. Quando percebi, nós dois já estávamos dormindo embolados, comentou, com um sotaque forte e caricato.

Nesta altura da corrida, eu já tinha tirado uma caneta da bolsa para anotar tudinho sobre a história de “Paraná”.

– E quanto tempo faz que vocês estão juntos?

– Xiiiii, mais de 18 anos. Agora a nega não trabalha, está cheia de moral. Ela fica em casa para cuidar dos cachorros e de mim. Leva vida de madame. Estica o cabelo toda semana, mas continua feia.

E para me provar a feiúra da nega, o motorista lançou mão do celular e abriu o Facebook.

– Olha ela aqui no cruzeiro que eu paguei pra ela!

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– Mas seu Juraci – nesse momento eu já sabia o nome dele -, a nega é muito bonita. O senhor é que é meio atrapalhado, afirmei, usando o jargão dele.

– Minha filha, conte isso para ela não, porque eu sou muito besta com essa muié. Nesse navio, a nega conheceu um pessoal de Alphaville, e agora ela quer viajar toda vez. Tá se achando! Não tenho muito dinheiro, mas eu dou vida boa pra nega. Nessa foto aqui, olha a metideza dela.

– Mas por que o senhor está emburrado nesse restaurante?

– Porque ela me levou pra churrascaria. Gosto de lugar cheio de frescura, não. A gente que trabalha na praça não é valorizado, muitos nos tratam feito lixo. O que muita gente não sabe é que eu venci na vida. Quando o policial que me ajudou a sair da rua me viu no táxi, ele ficou espantado:

– Ô, Paraná, não sabia que mendigo trabalhava, disse o cabra, todo feliz.

Quando finalmente chegou o meu momento de desembarcar do táxi, Juraci não queria receber pela corrida. Não pude aceitar e pedi a ele que pegasse o dinheiro. Na despedida deste novo amigo, pensei em nosso país moralmente falido e percebi na grandeza de gente como Paraná que, apesar de todo o caos, nem tudo está perdido.

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