365 vezes obrigada!


Por Guilherme Arêas

26/06/2016 às 07h00

Faz um ano que conheci Nilson, o engraxate do Aeroporto Santos Dumont que, de uma certa forma, mudou minha vida. Foi a força dele ao enfrentar uma existência de adversidades e de invisibilidade que me deu coragem para escrever essa coluna. Quando o vi ajoelhado no saguão do aeroporto no Rio atendendo a um cliente, fiquei muito indignada. Parecia estar assistindo a um capítulo da escravidão no Brasil. Na cena, Nilson, subserviente e recém saído de um hospital, tentava conseguir algum trocado para comprar o leite das filhas. Sem material adequado, fazia o serviço curvado, com os olhos voltados para o chão. Vestia uma camisa azul desbotada e usava gravata vermelha na tentativa de ser aceito em um ambiente completamente hostil com pessoas como ele: negro, pobre e com baixa escolaridade. O homem que tinha o sapato engraxado por Nilson não se deu ao trabalho de observá-lo. O tratou como coisa. No final, lançou o pagamento dele no ar, como se evitasse tocar alguém que, certamente, considerava inferior.

Passei toda a viagem do Rio para Juiz de Fora pensando naquela imagem e na frase que Nilson disse ao se despedir de mim. “É preciso ter coragem”, afirmou. Um pensamento martelava minha cabeça: eu precisava escrever sobre os Nilsons que todos os dias encontrava pelos lugares que eu passava. Assim nasceu a minha “Em terra de cego”, nome que escolhi como uma provocação, afinal, em terra de cego quem tem um olho é rei. Olhar é muito mais do que ver, é ser capaz de enxergar.

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De lá para cá, viajei país afora por causa das matérias do jornal e, principalmente, da literatura, uma porta que se abriu na minha caminhada de jornalista. Tornei-me escritora, dizem alguns, embora me orgulhe muito de escrever como a repórter que nunca deixarei de ser. E, nessas andanças, conheci pessoas fantásticas que seguem fazendo a diferença em meio a um cotidiano marcado pela indiferença. Como os barranqueiros e os índios do Rio São Francisco, expedição que me fez conhecer os brasis dentro do Brasil. Em outra viagem, conheci o ex-garçom de um restaurante francês de luxo que serviu de políticos a cantores famosos na década de 1980 e hoje, um executivo, acabou fazendo várias confidências no aeroporto de Viracopos, em Campinas. Nas faculdades que visitei de Norte a Sul, encontrei pessoas comprometidas com a profissão que abraçaram. Também fui conduzida por um universitário que pagava o curso de psicologia com o bico de motorista, a forma que encontrou para bancar o sonho de uma vida melhor para ele, a esposa e a filha recém nascida. E sigo, assim, me surpreendendo com as situações e as pessoas que me recebem.

No último final de semana, a caminho de um encontro literário no interior de São Paulo, embarquei no avião com toda a delegação do Tupi, que jogaria em Criciúma (SC). Me diverti pensando em qual seria a manchete do jornal se aquela aeronave caísse com todos nós dentro: “Luto no futebol: queda de avião mata time do Tupi”. Parece mórbido, mas foi apenas um delírio de jornalista, pois o nosso pensamento gira sempre em torno de assuntos que podem virar manchete de jornal.

Felizmente, chegamos, eu e o Tupi, sãos e salvos aos nossos destinos. O meu era São Francisco Xavier, uma cidadezinha paulista com menos de três mil habitantes. Lá conheci Sidney, o criador da Biblioteca Solidária. Homem que transformou a casa dos pais em um espaço permanente de cultura por amor aos livros e ao próximo. Assim, ele tirou o acervo do município de um cômodo da cadeia pública e o colocou em um lugar que garantisse o acesso de todos à leitura. Sidney fez um projeto que pulsa. No dia em que estive na sua casa de livros, meninos e meninas se aboletavam entre gibis, jogos de xadrez e aulas de culinária. Fiquei encantada ao perceber naquele ambiente povoado de adolescentes que nenhum deles perdia tempo com joguinhos no celular. Em um sábado ensolarado, estavam todos ali, por inteiro, com sede profunda de conviver e aprender.

Por isso, ao comemorar um ano desta coluna, quero dizer muito obrigada a todos que leem as histórias que publico a cada domingo. Nos últimos 365 dias, tenho sido presenteada. Posso dizer que, neste Brasil cênico, a melhor coisa que encontrei foram os brasileiros de verdade.

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