Sangue nas mãos


Por Guilherme Arêas, apresentado por Júlia Pessôa

19/06/2016 às 07h00

[Morrerei sem entender o ódio causado pelo amor que foge ao padrão heteronormativo. Quarenta e nove pessoas foram mortas por homofobia, intolerância e preconceito. Não há outra explicação. Se você diz “Amém” para Felicianos e Bolsonaros, acha que ser LGBTI é uma aberração, e que “menino novo tem que apanhar pra deixar de ser veado”, me desculpe: tem sangue das vítimas de Orlando nas suas mãos. Você fomenta e legitima o ódio de gente como o homem que puxou o gatilho, durma com isto. Tenho muitas palavras engasgadas sobre este dia horrendo, mas não o direito de proferi-las. Eu não sofro este preconceito, não vivo esta ameaça. Nunca levarei um tiro na cara simplesmente por causa de quem amo, ou por vivermos o amor em público. Quem escreve hoje é o Guilherme Arêas, meu conterrâneo de Três Rios, colega de trabalho, e queridíssimo amigo há mais de 20 anos. Na nossa infância, não se discutia sexualidade e gênero nas escolas, nem tinha “beijo gay” em novela. Surpreendentemente (!), o Gui é gay. Por isso, a coluna é dele hoje. Porque só quem sente a discriminação na pele sabe, de fato, como doem as mortes da boate Pulse. E tantas outras que nem chegam à mídia…]

Poderia ter sido eu. Poderia ter sido um amigo meu. Poderia ter sido um filho seu. Poderia ter sido você. Mesmo sendo 49 desconhecidos, os tiros na boate Pulse doeram em mim. Porque representam um ódio do qual eu posso ser vítima aqui em Juiz de Fora, e do qual várias pessoas sofrem no Brasil, um dos países que mais matam lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais.

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Já parou para pensar na crueldade que é matar alguém pela orientação sexual e identidade de gênero, algo que ninguém escolhe? E os tantos jovens que decidem interromper suas vidas por não serem aceitos em casa? É como ser condenado à morte só porque se nasceu com sardas no rosto, ou, sei lá, por ter um talento para artes ou matemática.

Falta de porrada, falta de Deus, falta de vergonha na cara, influência da mídia, estímulo de governos de esquerda… São tantas as causas e “soluções” apontadas para algo que nem deveria ser visto como problema. Deveria ser simples. Mas não é. Prova disto é que a heteronormatividade paira até entre gays. Uma parcela de nós acha vantagem não “dar pinta”, não ser afeminado, ter “cara de homem”, “voz de homem”, “jeito de homem”. Orlando também está na sua conta, amigo “não sou nem curto afeminados”. Aceite: somos todos da mesma laia, sim. Quando um LGBTI morre, é insultado, agredido ou expulso de casa, todos pagam o preço, inclusive quem vive preso a um papel social.

Por isso, hoje, mais do que protestar contra os massacres cotidianos em todo o mundo, quero prestar a minha homenagem às gays pintosas, lésbicas masculinas, drags queens escandalosas, travestis que ganham a vida com o próprio corpo, e toda espécie de gente que dá a cara a tapa por elas mesmas, por mim, e pela liberdade de qualquer pessoa ser o que quiser. Sintam-se homenageadxs Oswaldo Braga, Marco Trajano, Chiquinho Motta, Marcelo do Carmo, Cláudia Lahni, Daniela Auad, André Pavam, Fernanda Muller, Paulo Rogério, Mc Xuxú, Titiago, Bruna Leonardo e tantos outros importantes nomes de Juiz de Fora que estiveram, estão e ainda vão estar nas ruas levantando a bandeira da igualdade. São estxs xs grandes responsáveis por cada passo à frente, ainda que cada morte, cada xingamento, cada violência contra um LGBTI represente um passo atrás.

Minha visão religiosa e a pouca experiência dos meus 31 anos me fazem acreditar que estamos em um mundo de transição. E, como tal, ainda há visões bastante extremistas. Aposto muito no que as novas gerações podem representar de transformação no mundo. Mas, enquanto houver ódio, haverá amor. E quanto mais ódio, mais amor! Essa é – e sempre deverá ser – a nossa principal arma.

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