Quanto tempo?


Por Júlia Pessôa

12/06/2016 às 07h00- Atualizada 14/06/2016 às 15h05

Das coisas que mais me afligem, certamente o tempo e seu compasso louco ocupam um lugar de destaque. Porque ele passa depressa, sim. Parece que foi ontem que cheguei aqui a Juiz de Fora, com 18 aninhos, um número de inscrição da UFJF e uma ansiedade danada pelas possibilidades do futuro. Passou rápido demais. Ainda assim, quando penso em cada retrocesso que estamos vivendo, a cada manifestação reacionária e conservadora, que têm se proliferado como os coelhos se reproduzem, penso que nem um dia se passou desde os Anos de Chumbo, ou, possivelmente, desde a Idade Média. O tempo tem dessas coisas, obedece somente a uma regra: passar, mas não se responsabiliza pelo tanto de vida que nos consome neste seu devir. Nós que sejamos benevolentes: “dê tempo ao tempo”, “isso é só com o tempo”, “tudo tem seu tempo”. Que tempo?

Nos últimos dias, tenho conhecido uma faceta angustiante de Chronos. Como ecoou por toda a mídia, aprendemos que, no país da hoje desmascarada falácia do homem cordial, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos. A cada 23 minutos, aqui onde não há racismo, “porque o brasileiro é gente boa”, um jovem negro é assassinado. A cada três minutos, neste lugar onde vigora o “não sou preconceituoso, mas…”, um homossexual é vítima de algum tipo de violência. Não é papo de “esquerdopata” e “mimimi” vitimista, são dados de pesquisas que mapeiam a violência aqui “nesta terra em que tudo dá”, principalmente porrada.

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Em 11 minutos, eu tomo um banho rápido. Em 23, talvez dê para assistir um episódio curtinho de uma série da Netflix. Em 3 minutos, eu escolho um filtro para postar uma foto pretensiosa no Instagram. A noção que tenho do tempo, sendo branca, hétero, de classe média e cis, é bem diferente de quem passa a vida ameaçada pelo tique-taque, temendo ser o próximo número na estatística. Se bem que, sendo mulher, cada passagem de 11 minutos me assombra, porque a fila pode andar e minha vez chegar quando eu menos esperar, num dia de semana qualquer em que eu esteja fazendo meu trajeto habitual.

Qual é o significado real deste Delta -T (variação de tempo, que aprendemos nas aulas de Física que maldizíamos vez ou outra) que se passa entre a violência e a não violência? O que estas voltas no relógio estão nos dizendo? Mais importante, quantas atrocidades ficam fora desse passear dos ponteiros todos os dias? De quanto em quanto tempo uma criança é vítima de abandono paterno? Qual é o intervalo entre um assassinato e outro de pessoas trans? Quantos minutos se passam entre a negação de um emprego, o acesso a educação ou qualquer direito básico a uma pessoa negra e um caso semelhante? De quanto em quanto tempo você se importa com este tempo?

Daqui da minha vida privilegiada, e principalmente do meu papel de jornalista, eu posso expor estes números, dar voz a quem passa a vida temendo estas estatísticas, porque é diretamente ameaçado por elas. Dar voz, e jamais falar em seu lugar. Quanto a minhas convicções pessoais e meu anseio e direito de bradar contra as injustiças, decidi que, enquanto eu tiver gogó, vou por a boca no trombone contra tudo o que oprime, mata e violenta, a todo tempo. Acabei adotando uma lógica pueril, mas abusada dos tempos de menina, quando era fácil responder a quem tentava me silenciar. “Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu.” Não nos calaremos mais.

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