Uma próxima infância


Por Júlia Pessôa

24/01/2016 às 07h00

Um dia olhou para ela e não viu mais a cumplicidade de sempre, ou aquele amor que tanto lhe havia sido acolhedor. Procurou também voltar a rir das bobagens que falavam, mas, desta vez, achou tudo simplório demais. Até sua risada, um dos sons que mais adorava escutar, irritaram. Achou pouco. E escassez de qualquer coisa é uma tristeza. Suspirou e decidiu permanecer um pouco mais. Afinal, o que custava, depois de tanto tempo?

Mirou em sua direção e reviu toda a história que compartilharam. reviu e reconheceu os laços que mantinham sua caminhada de mãos dadas até o presente, mas pela primeira vez em tantos anos, quis libertar os dedos. Cansou-se do passo dela, que tanto já havia tido o compasso do seu, não raramente tendo carregado sua marcha nos tempos em que seu andar era moroso demais. Mais pungente que isso, via que o caminhar dela se voltava para a direção oposta da que pretendia seguir, e sentia, em vez de pesar ou tristeza, alívio – seguido por uma dose contraditória, mas infalível, de culpa.

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Com o tempo, foi se deixando esquecer das noites em claro fazendo grandes planos que tinham para a vida, ou apenas comentando pequenices daquele ou de outros dias, memoráveis ou não. Cada vez mais, iam ficando distantes as tardes em que o silêncio não era um constrangimento ensurdecedor, agora amenizadas apenas pela chance de um olhar mutuamente desviado para a tela acesa do celular – viva a tecnologia! Pouco importava que tivessem desfrutado da euforia de tantas primeiras vezes lado a lado, sentia hoje uma ansiedade incontrolável pelas últimas vezes. “A última vez que vi”, “O último chope que tomei”, “A última vez em que falei”, e esperava acrescentar um longo período de tempo para complementar a sentença e livrar-se do fardo dessa convivência plastificada, falsa. Promessas de “para sempre”? Fizeram sim, mas quem não faz?

Não sem uma espécie de melancolia, mas em um ato completamente desprovido de solenidade ou de um anúncio formal via telefonema, encontro, WhatsApp ou qualquer modalidade moderna de despedida, apenas simplesmente permiti que ela se fosse. Finalmente reconheci que ela havia deixado de existir há tempos, e fiz as pazes com a constatação. De fato, ela, que também já queria ir faz muito, seguiu em frente, e não foi o fim dos tempos. A maioria das amizades de infância – não importa em qual altura da vida tenham sido seladas – duram somente o espaço de tempo, fatalmente breve, em que se permite de ser criança, alheia às frequentes porradas de realidade que nos impõe a vida adulta.  Adeus, até uma próxima infância.

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