O processo de saída da cozinha


Por MAURO MORAIS

19/11/2015 às 07h00- Atualizada 19/11/2015 às 08h50

Doutor em literatura, Anderson Pires rejeita discurso de vítima e defende Machado de Assis como escritor que deu conta de falar dos negros (Marcelo Ribeiro)

Doutor em literatura, Anderson Pires rejeita discurso de vítima e defende Machado de Assis como escritor que deu conta de falar dos negros (Marcelo Ribeiro)

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Entre uma xícara e outra de café, ele dispara a falar sobre a dissertação de mestrado que defendia a relação entre literatura e história em quadrinhos, a tese de doutorado sobre a vanguarda moderna no Brasil através da repercussão e recepção das obras de Mário de Andrade e Oswald de Andrade e sobre outros aspectos literários que circundam seu dia a dia, fazendo os livros tomarem conta de todo um quarto de sua casa. O mesmo homem que se volta para mim mostrando pleno domínio da literatura nacional é aquele que em 2010 desviou-se de outros rostos na avenida principal de Itaguaí, no Rio de Janeiro, quando apontado pela polícia como elemento suspeito. Ao entrar no banco, foi logo para a fila enquanto o irmão parou, na porta, para conversar com uma conhecida. Uma mulher, adiante na fila, observou sua entrada e logo saiu. Chamou a polícia, que os abordou na saída, pedindo todos os documentos e desconfiando de todos os papéis. Quando, no carro, Anderson Pires da Silva apresentou a carteira de professor universitário, estancando a situação, o constrangimento já havia marcado. O problema estava na pele, na cara.

“Meu combate é este: refletir que uma das causas que mantêm o racismo é a sociedade materialista, que estimula a paranóia, o individualismo e não está a favor da compreensão, do respeito à igualdade”, expõe Anderson, poeta, doutor em literatura e professor da Faculdade de Letras da UFJF. Um dos cerca de 20 professores efetivos do quadro da universidade, num universo de aproximadamente dois mil, de acordo com levantamento preliminar da instituição, Anderson ocupa um dos mais destacados lugares da intelectualidade. E nesse espaço também há um estereótipo definido. E ainda que lhe seja exigido, de alguma maneira, pensar no negro dentro da academia, ele segue por outra via.

[Relaciondas_post]“O negro não é meu tema de pesquisa, mas minha pesquisa de doutorado sobre Mario e Oswald de Andrade tinha o objetivo de discutir e analisar os lugares que criamos de consagração para determinadas figuras, propondo uma visão desmitificadora”, diz. “Minha literatura dá conta do negro, mas não quero que isso seja um estilo”, completa ele, reforçando que sua forma de responder às “revistas” cotidianas é, simplesmente, assumindo o lugar que deseja, no qual acredita, e não o que lhe resta. Em um de seus poemas, ele escreve: “nesta sala de aula/ sou o único de cabelo duro/ o único de vermelho/ o único que não vê a menor graça nas piadas/ mas não sou o único de óculos”.

Novela

Novela “A cabana do Pai Tomás”, de 1969, teve a primeira protagonista negra, contracenando com um branco no papel de escravo

Intelectual, numa seara dominada por brancos, Anderson brada em versos. “No nosso país, a literatura ainda é muito branca. Na cena contemporânea, há um mesmo tipo de perfil. Se for do Rio, é branco, estudou na PUC, teve uma experiência cosmopolita, escreve sobre ela e apresenta uma relação familiar com a ditadura”, comenta. O caminho, segundo ele, não é criar mais um lugar do gueto – “Dentro da literatura brasileira, criou-se a ideia de autoria negra, um departamento, um lugar no qual o autor negro só pode refletir politicamente sobre isso”, aponta -, mas ocupar, ajudando a reescrever a história, ficcional ou não. “É preciso reescrever a história o tempo inteiro. Manter determinados lugares acaba virando uma prisão. Muitas reivindicações do movimento negro se justificam no racismo, na escravidão como um crime hediondo, o que é irrefutável, mas também uma forma de manter o estigma.”

Avanços ainda no quarto de despejo

Autores como Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de despejo”, com suas memórias de favelada, e a mineira Conceição Evaristo, voz contemporânea da discriminação racial, ainda são exceções da inserção do negro na intelectualidade brasileira. “Houve uma tentativa, por alguns pensadores do século passado, de embranquecer a sociedade brasileira. Aqueles que não se assumiam como negros já passaram a se assumir como negros. Está acontecendo uma mudança positiva. Aumentou-se a presença do negro nas universidades públicas, e isso gera conflitos, porque alguns não querem perder privilégios, mas caminhamos para a construção de uma sociedade democrática, em que todos tenham espaço”, pontua o professor da Faculdade de Educação da UFJF Julvan Moreira de Oliveira, que, entre suas pesquisas, investiga a produção do intelectual congolês radicado no país Kabengele Munanga.

“A produção africana ainda não entrou no país”, lamenta o professor, que integra a Associação de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN), entidade que consegue reunir em seus congressos cerca de dois mil intelectuais negros e que foi a responsável por levantar questões como a política das cotas raciais. “Somos pouco representados nos mais diversos segmentos, e isso tem reflexos em várias áreas. Em termos simbólicos, se tivéssemos mais negros nos meios de comunicação, a população se inspiraria. É importante, numa sociedade democrática, que todas as pessoas tenham espaços, que estejam representadas em todos os lugares. O negro ainda está, em sua maioria, em trabalhos que a sociedade desvaloriza”, afirma Julvan.

Em frente à faculdade onde leciona, Julvan estampa um banner com a seguinte pergunta: “Quantos professores negros você tem?”, campanha elaborada pela UFJF através da diretoria de Ações Afirmativas. Seguidas da hashtag “nãoécoincidência”, as fotografias jogam luzes sobre os poucos intelectuais que dão aula na instituição, provocando, assim, a reflexão acerca da desigualdade racial, tema também da série de palestras, debates e exibições cinematográficas que a universidade recebe nesta semana e seguem até a segunda semana de dezembro, em diferentes pontos do Campus Universitário. Nesta quinta, o cineasta Joel Zito Araújo apresenta e discute seus filmes “Filhas do vento” (às 15h) e “Raça” (às 19h), no auditório da Faculdade de Educação.

Para a militante Adenilde Petrina, convidada a comentar uma das produções de Joel Zito, casos de racismo contra artistas, como os da jornalista Maria Júlia Coutinho e da atriz Taís Araújo – dois exemplos recentes, nos quais internautas ofenderam ambas – apenas confirmam que a intolerância está mais visível do que os próprios negros. “Ainda não acreditam que temos condição de entender os teóricos, de estarmos em destaque. É urgente enfrentar, tendo a coragem de mostrar que conseguimos pensar”, defende Adenilde, uma das idealizadoras e integrantes do Coletivo Vozes da Rua, no Bairro Santa Cândida. Questionada sobre artistas que a representam na grande mídia, a militante recua. “O pessoal do hip-hop me representa, mas na mídia alternativa”, diz, citando a resistência que ainda cerca a cultura de periferia.

‘Ainda não chegamos à sala’

Julvan, da Faculdade de Educação, integra campanha que chama atenção para a pequena presença de professores negros na UFJF

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Julvan, da Faculdade de Educação, integra campanha que chama atenção para a pequena presença de professores negros na UFJF

Ruth de Souza foi a primeira protagonista negra de uma telenovela brasileira, em “A cabana do Pai Tomás”, de 1969. Ironicamente, o par de Ruth, que fazia o papel do escravo negro que dá nome à produção global, foi interpretado por um ator branco, Sérgio Cardoso, que pintava o rosto para entrar em cena. O dramaturgo e crítico Plínio Marcos, na época, foi quem levantou a discussão acerca do disparate, defendendo o nome de Milton Gonçalves (no elenco da novela) para o papel. No premiado documentário “A negação do Brasil”, de 2000, Joel Zito Araújo resgata a história e revisa a presença dos negros nas novelas nacionais, em entrevistas com artistas como os próprios Milton e Ruth, além de Léa Garcia, Zezé Motta e Maria Ceiça.

Esse ator das cozinhas ganhou novos espaços?, pergunto ao cineasta Joel Zito. “Infelizmente, ‘A negação do Brasil’ ainda não está datado. Adoraria que estivesse, mas a realidade mudou pouco, embora tenha modificado. Hoje temos uma presença maior de negros na mídia, porém, continuamos sendo minoria no país onde somos maioria”, defende. “Mister Brau”, a série global no ar que traz o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos nos papéis principais, é, segundo o diretor, exceção. “Nossa produção audiovisual ainda é pequena para alterar esse paradigma racista da nossa sociedade brasileira”, pontua.

“Continuamos no fundão, ainda não chegamos à sala. É doloroso, revoltante, porque se fala em discriminação mas não se reconhece a cultura negra, da rua, do morro, do gueto”, critica Adenilde Petrina. “O que podemos fazer é insistir, mostrando que nosso povo tem o que dizer e fazer”, acrescenta. Otimista, Joel Zito vislumbra um cenário melhor no futuro, a partir da formação desses estudantes que acessaram o ensino superior a partir das cotas para negros. Para ele, a intelectualidade se afirmará no rito de passagem, demarcando um território no qual a pele não incidirá sobre o que a cabeça pensa. “Eu mesmo segui esse rumo. Nunca fui filiado a uma entidade do movimento negro. Na juventude, porém, por uma influência de diversos movimentos culturais, fui compreendendo que me afirmar como negro me tirava de um lugar de subalternidade. O negro brasileiro está acostumado a ser humilde, a pedir desculpa pela presença. Agora, contudo, estamos olhando no olho.”

 

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