Então o mendigo que remexe o lixo da minha rua passou, e reparei que dessa vez estava desanimado e cabisbaixo, cena que se tornou frequente durante a pandemia. Destacou-se entre tantos outros, angariou simpatias, até mesmo agrados. Os que não sobramos temos sempre alguma sobra em casa. O tradicional pão velho, o biscoito murcho, um hambúrguer comprado a mais, frutas maduras, isso e aquilo. É a mesma discrepância que desenha o panorama social da gastronomia. O desânimo com que olhava as calçadas natalinas pós-ceias é contraste icônico, indício alarmante, símbolo galopante e acachapante do descuido geral.
Entre o “Hô! Hô! Hô!” postiço do Bom Velhinho e o “Há! Há! Há!” debochado e cínico do Mau Agouro não sobrou, ao que parece, nem a migalha do acaso de uma alma compadecida de sua comiseração e fome, afinal, as bocas com as quais celebramos com gulodice a Boa Nova não engolem tudo. Pior, “porque hoje é sábado” e feriado, e amanhã é domingo e não tem recolha do lixo, o milagre é esperado apenas para a segunda-feira. Tal conjunção põe a perspectiva de dieta zero na desordem diária e contrasta com a comilança turbinada da data por si só comemorativa. Deixar de comer é circunstância abjeta ou demagogia utilitária das dietas vendidas por aí.
Enquanto escrevia ouvi o farfalhar de seus chinelos surrados retornando e da sacola vazia que carregava desde o começo da observação, como um adereço ou estandarte do bicho pobre, bandeira poética, manual de protesto balançando em movimentos severos. O motivo é que logo atrás surgiram mais dois mendigos perplexos do mesmo modo, parecendo perguntar: “Então, não é Natal?”. E aqui entramos no território da crítica política necessária para buscar encher a cabeça, o bolso e a vida da pobreza com algum respeito e dignidade e comida, repetição básica, enfática. Muitas iniciativas nas comunidades alertam para isso e tentam preencher esse vazio, mas, como já vimos, a contribuição dos governos é fundamental e indispensável. Não existe liberdade sem vida, e mercado de capitais não libera solidariedade.
Evidentemente, as vidas perdidas na pandemia combinadas com o genocídio do descaso político azedaram boa parte das ceias de quem perdeu o emprego nos dois natais do período. Já os corações, espero que não, porque aconselha a sabedoria popular: ano novo, vida nova! Axé! E lembremos que ao se vislumbrar o final da tragédia do coronavírus vêm aumentando os números da gravidez no país. “Após a tempestade” é um livreto de Divaldo Pereira Franco, ditado pelo seu elo lírico Joanna de Ângelis, que aconselha continuar, e é isso que importa.
A contrastante desesperança da mendicância toda, ávida pelos restos natalinos, só terminará daqui a dois dias de quando escrevo. Então a esperança ressurgirá no meio da rua, no passeio ou na calçada, embrulhada precariamente em papel de presente. Isso pode ter um significado qualquer de Boa-Nova. No próximo fim de semana, os papéis serão outros. Os presentes dentro e fora da festa, não. No cardápio, saem o peru e o frango, que ciscam para trás, entram a leitoa e o porco, que fuçam para frente. E, como num poema concretamente azedo, o lixo parecerá novamente um luxo, mas temos que ir além das aparências e manter fé na vida. E sobreviver pelo menos até o terceiro dia para conferir esse outro “révenhon”. Enquanto isso, o indescartável refrão seguirá ecoando: feliz ano novo!
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