Era de manhã, numa terça-feira de sol e tempo seco, numa periferia, numa visita domiciliar, numa rua de numeração confusa.
Procurei por um nome, um endereço.
Alguém gritou: – Ana*, corre lá! A visita é para você! A visita é para você!
Lá vem a Ana: – Podem vir! Eu mostro o caminho. Graças a Deus que vocês vieram! Eu estava esperando.
E eu fui. Seguindo. Ela impôs o ritmo da caminhada de alguns parcos metros, num caminho curvilíneo de chão batido.
– Chegamos! Podem entrar!
Entre o estreito barranco e a porta da casa de um cômodo, lá estava ela: a pinguela. Aqueles pedaços finos de madeira eram a única ligação entre a casa suspensa no vazio e o restante do mundo. Era o acesso. A sustentação. Tão frágil quanto funcional, porque era ela que ligava um lado ao outro.
Entrei com receio, mas sem prevenções. Ana me deu a mão. Achou um pouco de graça do meu desajeitado andar sobre a pinguela (ou será que seu riso foi de constrangimento?).
Entramos de mãos dadas. Ela me ajudou a entrar.
Encontrei uma família numa casa suspensa, sem água encanada, energia elétrica ou banheiro. Pensei: quantas ausências cabem num só cômodo? Ali, eram muitas.
Conversamos. Falamos das crianças, da falta de dinheiro, do trabalho que não vinha para ela. Falamos de caminhos: os percorridos até ali, e também por onde talvez ir para que as coisas melhorassem do jeito que ela queria… Ana olhava para fora.
Combinamos um novo encontro dali a uns dias, como que firmando alguns próximos passos.
E, na saída, de novo: a pinguela. Naquela perspectiva do olhar de dentro da casa, achei a vista da saída mais inclinada do que a da entrada. Era mais difícil. Então, decidi sair descalça. Pé no chão dá mais firmeza!
E lá foi a Ana me ajudar a sair. Deu-me a mão e, nessa mão, a segurança que me permitiu atravessar a pinguela. Retomar meu caminho.
Nos despedimos num até logo. Calcei os sapatos mais adiante. Deu um nó no peito. Lembrei da poesia do Benedetti: “Nunca trouxe tanta coisa/nunca vim com tão pouco”.
O nó foi a pinguela que me atravessou e me fez pensar nas pobrezas que alimentam as distâncias. Nos mundos gerados pelas desigualdades e nas dificuldades de construirmos pontes entre eles, para que seja mais possível a superação das misérias.
Falei da pinguela o resto do dia. Achei graça. Quem ouviu achou também. Mas, na verdade, eu queria era falar da Ana. Das Anas, que por aí estão tão sozinhas, tão apartadas.
E, por mais um pouco, continuar a falar da Ana, para quem eu queria mesmo é dar a mão de novo e fazer companhia até que ela retome seu caminho, encontre uma entrada e as saídas que escolher. São muitas as travessias que ela precisa enfrentar.
E eu queria mesmo é que meu trabalho servisse de pinguela para ela poder atravessar!
*nome fictício.
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