Era uma tarde qualquer de 2002, minha colega de estágio não apareceu na Secretaria de Assistência Social como de costume. Eu, aluna do 2º ano de serviço social noturno, e ela, que aqui chamarei de Júlia, do matutino. No dia seguinte, ela aparece cabisbaixa e nervosa, óculos escuros tentando disfarçar as marcas da violência em seu rosto: olho roxo, boca cortada, testa ralada e partes da cabeça com falhas de cabelo. “Vamos comigo na delegacia”, disse ela, num misto de vergonha, medo e desilusão.
Seguimos para a delegacia e lá fomos atendidas do começo ao fim somente por homens. Algumas piadinhas e constrangimentos depois, fomos liberadas. Júlia disse: “Preciso voltar para casa, estou muito tempo fora, não posso dar motivo”.
A revitimização da mulher que sofre violência, o constrangimento de ser inquirida por policiais do mesmo gênero que o seu agressor, a fragilidade no sigilo de seus dados pessoais, além de outras violências institucionais, eram uma constante no atendimento dessas mulheres.
Pensando na proteção integral da vítima, desde a tipificação dos diferentes atos de violência até a criação de uma delegacia especializada para o atendimento da mulher, é que a Lei nº 11.340/2006 – popular Maria da Penha – foi criada quatro anos depois do que ocorreu com Júlia. As mulheres, antes dessa lei, estavam muito mais expostas.
Porém, ainda hoje, não é fácil. Mulheres que denunciam a violência vivida precisam, na maioria das vezes, abandonar a sua casa, mudar os filhos de escola, avisar os parentes sobre uma possível retaliação do agressor, mudar de emprego, mudar de faculdade, de telefone e até de cidade – da mesma forma que ocorreu com a minha colega, já que ela “deu motivo” denunciando.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) – estudo baseado em informações das secretarias estaduais de segurança pública de 2020/2021 -, cerca de três mulheres são vítimas de feminicídio por dia no Brasil. Quando inquiridos, os assassinos apontam que elas deram motivo: usaram roupas curtas, traíram, olharam para outro homem, quiseram se separar, chegaram tarde em casa, saíram com uma amiga, recusaram-se a ter relações sexuais ou, pasmem, queimaram o jantar.
Por isso, para as mulheres que são vítimas de violência – independentemente se física, moral, sexual, psicológica ou patrimonial -, viver é conviver com o medo, todos os dias, dentro e fora de casa, independentemente se elas permanecem em relacionamento com o agressor ou não. É estar constantemente em alerta, analisando se “deu motivo”.
Muito já se tem feito em termos de política de atendimento e legislação protetiva nos últimos 20 anos, porém a mudança de cultura e atitude em um país com um histórico colonialista, envolvendo mais de 500 anos de poder sobre os corpos, é temporalmente indeterminada.
Por isso, se você está sofrendo algo que foi pontuado aqui, não se cale. Eu não me calei, a Júlia não se calou, minhas amigas e parentes não se calaram, e por isso estamos vivas. Fuja, procure ajuda na rede de atendimento à mulher de sua região: Delegacia da Mulher, CRAS, CREAS, Disque-Denúncia 180. Conte com a sua rede de apoio pessoal: converse sobre o que acontece com você para amigas(os), família, pessoas de sua confiança. Você não está só.