“Eu vim para que todos tenham vida… que todos tenham vida plenamente!” Musicados, os versículos da missão de Jesus soam ainda mais reconfortantes, porém quão distantes da trágica realidade atual! A morte de mais de 110 mil brasileiros pela Covid-19, vítimas de um desgoverno que menosprezou a doença enquanto se preocupava com a saúde da economia, demonstra a fragilidade da vida. Como tuitou o Papa Francisco, há de se vencer os dois vírus: “Um pequeno, mas que colocou o mundo inteiro de joelhos, e um grande, o da injustiça social!”. O grande, apesar daquele número absurdo, é muito mais letal, posto que mata, acomoda e infecta pessoas de todas as classes sociais.
É desse mal de que se fala quando o tema da infância ocupa o centro de acontecimentos atrozes dos últimos dias. Primeiro, a injustiça social mostrou seu rosto de intolerância racial e religiosa quando uma criança virou alvo de fundamentalistas que queriam lhe negar o acesso à sua ancestralidade vívida nos terreiros de candomblé. Depois, de forma mais bárbara, quando uma menina de 10 anos, violentada no seu corpo, na sua alma e na sua dignidade, foi ofendida por essas mesmas vozes!
Para nós, leigos católicos, essas vozes truculentas, cheias de ódio e de amor somente às armas, nada têm do projeto evangélico de valorização da vida defendido por Jesus. Nossa decepção aumenta quando abrimos os ouvidos para ouvir nossos bispos: o que se recebe são infelizes declarações!
Duas falas publicadas no site da CNBB no dia 18 de agosto bastam como exemplos. O site reporta a fala de seu presidente, d. Walmor A. Oliveira, referindo-se a “dois crimes hediondos”, sendo um a violência sexual e o outro a violência do aborto. Destaque maior é dado à manifestação de d. Ricardo Hoepers, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família, que fala do aborto como “um ato horrendo, de um ato abominável, nós demos a pena capital a um bebê”.
Decepcionam pelo simplismo, não distinguindo embrião, feto e bebê, e ainda qualificando como pena capital um procedimento cirúrgico destinado a salvar a vida de uma menina. Além disso, não tratam o tema do aborto com o devido cuidado e profundidade. Trata-se não apenas de questão moral, é um problema de saúde pública, no qual o mal da injustiça social também crava suas garras desigualmente. Por isso, o debate deve ser feito com seriedade, levando em conta os conhecimentos científicos, a Ética e – para os cristãos – os preceitos bíblicos de defesa da Vida.
O que deve ser debatido, nesse caso, é a pedofilia, a cultura do estupro, a violência contra mulher. Às vítimas devemos oferecer a quietude da acolhida e do acompanhamento para o que lhes resta de vida. Ao grande vírus que lhes abateu, cabe-nos romper os silenciamentos e enfrentar, buscando nas leis, na educação integral, no respeito à liberdade responsável, formas onde as vidas se realizem em plenitude.
“A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”, afirma o Santo Padre (Gaudete Exsultate 101).