No meu tempo de estudante de jornalismo na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, havia uma matéria chamada “Jornalismo Comparado”, que se resumia em dar diferentes versões a uma determinada notícia divulgada na mídia. Na época, rede social não era nem sonhada. TV, rádio, revistas e jornais impressos que tinham a palavra final sobre os acontecimentos. A turma da faculdade era boa, e de um mesmo fato saíam muitas versões, algumas deveras interessantes. Eu, modéstia à parte, era craque no assunto. Vamos a um exemplo.
Assistimos recentemente, estarrecidos, à ação da Polícia Rodoviária Federal que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, porque ele pilotava uma moto sem capacete. Não é necessário narrar em detalhes a covardia que foi exibida à exaustão na TV e nas redes sociais em busca de audiência. “Policiais agrediram Genivaldo de Jesus por 30 minutos, dizem moradores”, estampa o jornal “Folha de S. Paulo” como chamada de capa em 27 de maio.
Nas imagens divulgadas percebe-se que havia muitas pessoas no local. Dá para ouvir comentários (“vão matar ele!”), e, num determinado trecho, vê-se um homem com os braços cruzados às costas enquanto assiste à execução. Se os policiais agrediram Genivaldo por 30 minutos, na cara de todo mundo, por que ninguém interferiu? Naquele momento, os policiais não estavam abdicando do seu papel de guardiões da lei e da ordem e assumindo o de assassinos cruéis? Ora, um crime estava sendo cometido por quem deveria combatê-lo! E todo mundo olhando. Se eu fosse escrever essa matéria numa aula na UGF, ela sairia com o título: “Deixaram matar Genivaldo”. Melhor ainda: “Deixamos matar Genivaldo”.
Não estou fazendo julgamento de valor nem acusando ninguém, pois sei que a inércia da população diante de todo tipo de agressão dos “de cima” tem raízes profundas. É uma cultura trabalhada e sedimentada há séculos na exclusão e no medo, principalmente dos que só conhecem a justiça quando ela lhes cai no lombo. Nesse arremedo de sociedade, nossas polícias trabalham historicamente como guarda pretoriana do que se convencionou chamar “elite”; e os pobres (e pretos) são os “criminosos” a serem abatidos. É o que vemos no dia a dia, ao vivo e a cores.
Apesar das ameaças de Jair Bolsonaro, cada vez mais descoladas das reais necessidades do país, creio que em outubro teremos eleições que serão respeitadas, doa a quem doer, mas continuo cético quanto às mudanças profundas que se fazem necessárias. Mirando no exemplo de Genivaldo, que poderia estar vivo se o povo tivesse voz e a usasse, penso que o Brasil só tomará outro rumo quando houver de fato uma vigorosa interferência e arbitragem da população. Como se dará isso não sei. Mas sei que voto na urna não basta. A democracia precisa ir além. Até lá, outros “Genivaldos” virão.