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A hipocrisia do Enem

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Em 2016, escrevi um artigo para a Tribuna intitulado “Exame nacional da segregação”, no qual contava minha experiência lendo a prova do Enem para pessoas com deficiência – em sua maioria, cegas. Nos últimos anos, vi candidatos chorarem ao meu lado, abandonarem o exame e até mesmo não comparecerem – fato que se repetiu nesses últimos domingos.

Enquanto o Brasil se impressionou com 30% de abstenções no primeiro dia desta edição do Enem, mantive-me sóbrio ao notar que mais da metade dos deficientes não realizou o exame na escola onde trabalhei. É absolutamente natural que pessoas com deficiência não compareçam. Ninguém é obrigado a fazer uma prova que mais serve como constatação de seu alijamento da sociedade que para, de fato, acessar ao ensino superior.

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Especialistas afirmam que os aprendizados visual e auditivo se complementam para que haja efetiva absorção do conteúdo. Logo, não existe justiça na ampla concorrência quando se comparam notas de pessoas que têm seu método de aprendizado limitado a apenas um sentido: há desrespeito e humilhação. Vende seus olhos e tente fazer as questões de matemática, física e química do exame com um parente lendo-as para você e logo entenderá o que digo.

E a resolução do problema é urgente. O custo de oportunidade para o país gerado pela opção de ignorar a população deficiente não se resume apenas à perda de possível mão de obra qualificada e ao aumento da população economicamente inativa em um país arrasado por corrupção e crises econômicas.

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Para cada pessoa com deficiência que deixa de participar do Enem por ver que o exame não foi feito para permitir seu sucesso, o valor de cerca de R$ 1 mil é distribuído entre aplicadores especializados e chefes de sala contratados para atendimento individualizado. Multiplicando esse valor por milhares de ausências Brasil adentro, descobre-se um montante capaz de – com boa vontade e administração pública séria – ajudar a renovar a educação do país.

Não fosse trágica, a decisão deste ano do Ministério da Educação para a redação seria um ótimo pano de fundo de um esquete de humor pythonesco. Pediu-se para o candidato propor soluções para a educação de surdos, enquanto o próprio MEC – quem poderia fazer algo – é incapaz de agir para resolver o problema.

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Pior que isso: a pasta persiste, ano após ano, em uma infeliz cruzada de convencimento nacional sobre sua falsa inclusão, usando ainda a redação do Enem como arma política. O Estado faz questão de dizer que ninguém pode ir de encontro aos Direitos Humanos no texto. Ele, porém, pode fazê-lo como lhe convém em todas as esferas da vida pública. Mas é compreensível. Demagogia e falso moralismo são muito mais fáceis e convenientes que o trabalho em prol de minorias da sociedade.

Inclusão social não é permitir que deficientes façam uma prova: é dar condições para que eles possam realmente fazer parte da nação. Mas no país onde uma portaria favorável ao trabalho escravo é motivo de piada para Gilmar Mendes, ministro do STF, e subterfúgio para a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, furar a lei e cobrar salário de R$ 61 mil, não basta aos deficientes estar à margem da sociedade. Os cegos são também invisíveis, e os surdos não têm voz.

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