“Dois mil e vinte está a partir, então caminhe e dissipe o aroma do passado, afogue a narina de respiro novo, sinta o vento de sensações desconhecidas…”
Seguir em frente. Seguir, porque não há outro jeito mesmo, mas seguir com vento no rosto, com a mente sem controle, pois não há muito como fazer isso. Tem coisa que a gente controla, disse a monja, a respiração é uma delas, e com isso talvez a piração, acrescento eu.
Ronda por esse período a tentação de sucumbir. A vontade, porém, é não se abalar e seguir sem olhar para o lado ou para trás. Mas seria isso nos esfriar e deixar naufragar nosso maior sinal de humanidade? Sentir o mundo e seus habitantes? Tudo à sua dose. Qual dose mata e qual te prepara para eventos maiores? Justa medida.
Deveríamos sair um cadim para caminhar, sem tumulto, de máscara, é esse o nosso agora. Deixar passar o pensamento junto com o passo da caminhada, ouvir as vozes internas em silêncio. Testar o dito e redito, refletir em movimento e ver o que é isso tudo com o olhar de caminhada. Esse olhar que passa, que muda de lugar a cada passo. Ventilar certezas, dores, apegos, vontades de torpor e arrogâncias. Aprender a conviver com o que não depende de nossa ação, observar o que é estar, no que nos cabe ação. Aceitar.
Aceitar é uma palavra sofrida, é sim. Nos tira o poder. Contudo toda palavra, fruto do nosso estar no mundo, produz uma “despalavra”, o pensamento é portador do poder do contra, da contradição. Sempre há um porém.
Não se aceita tudo, não mesmo, nosso mecanismo interno de humanidade não aceita certas coisas nem pode ou deveria, ainda que alguns se aproveitem de nos ensinar (adestrar?) a aceitar. Vivo de muitos não aceito, ajo em função de muitos não aceito.
O fim de ano, assim como o fim de cada minuto, nos dá o suspiro da despedida, posto que é prelúdio aceitar a ida. Estar na antessala da porta nova, inevitavelmente, traz reflexão.
Absurdos, tantos absurdos em nossos ouvidos. Covas que vimos abertas sob nossos pés, desabes de terra podre assentada na hipocrisia que vazou feito gás… espirros de ignorância que trouxeram dor e mortes evitáveis. Mas a gente segue fazendo primavera em meio ao napalm, com solenidade aos que tombaram, plantando flores, fincando morada nas terras que não produzem pão. O nosso cada dia é luta e solidariedade.
O avesso da partida é ficar no ar da despedida. Dois mil e vinte está a partir, então caminhe e dissipe o aroma do passado, afogue a narina de respiro novo, sinta o vento de sensações desconhecidas, sussurros de juras feitas além das montanhas, cheiros frescos de hálitos dos beijos e falas desconhecidas, misturas de abraços, cabelos de quem não conhecemos a deixar rastro de flor nomeadas nas embalagens do xampu, ou melhor, o aroma curandeiro de flores e ervas penduradas no canto de orelhas que sorriem, aromas de haste balançada de alecrim.
Um 2021 para ter olhar absurdo é o que desejo. Desejo a ternura absurda de deixar o humano florescer em meio aos robôs que se lançam à rede para parecerem muitos. Um 2021 para aceitar que é a gente que não aceita que vai dissipar o impuro do ar impregnado de coisas ditas imutáveis. Esse texto é sobre a serenidade de não aceitar, sobre meditar a ação barulhenta dos “meu pirão primeiro”.
Para quem esperava um texto sobre feminismo, racismo e política, foi sobre isso que falei.