Precisaremos de coragem para pôr em memória, num futuro muito próximo, que 2020 foi um ano que existiu sim! A prova disso, até um certo “privilégio”, é que estamos nele. Não poderemos, não podemos simplesmente arrancá-lo da biografia.
Exemplos de que precisamos encarar as dificuldades históricas, e mesmo estudá-las, escancará-las, e, principalmente, confrontá-las, existem aos montes. É uma necessidade psicocultural entender os problemas, falar deles, aprender com eles para, assim, superá-los. Os alemães, por exemplo, o fazem com o Holocausto. Lá há disciplinas escolares sobre, há museus, monumentos, todos com o intuito de fazer com que as gerações do presente não repitam as atrocidades do passado nazista.
Não devemos fazer de 2020 o nosso “agosto” das superstições, ou o nosso “ano com final par que sempre dá azar” (outros ponderam que o azar vem com os ímpares). Não podemos apagá-lo como quem apaga uma música da sua playlist só porque ela lembra um amor não correspondido ou um namoro, um casamento, mal vivido. Precisamos encarar a certeza de que 2020 está sendo um ano difícil e será lembrado assim. Os porquês: as quarentenas, os isolamentos, as crises econômicas de setores diversos e financeiras de inúmeras pessoas. Porém, e principalmente, é que já carregamos a cicatriz histórica de que é o ano da pandemia, aquela que nos “surpreende” com mais de 100 mil mortos só no Brasil!
E muitos estão querendo o quê? Apagar os primeiros 365 dias da segunda década dos anos 2000; dizer que ficamos presos nele (o ano). Para autocrítica: encobriremos 2020 como fazemos com a história de negros e índios do Brasil? Ocultaremos 2020 como fazemos com os porões da Ditadura, não falando em torturas, assassinatos de Estado e otras cositas? Ou como fazemos com a década de 1980, denominando-a até de “Década Perdida”?
Na Alemanha existem pequenos memoriais nas calçadas que homenageiam as vítimas do Holocausto. As pessoas “tropeçam na história” cada vez que se deparam com as chamadas Stolpersteine (“pedras de tropeço”) – elas demarcam as frentes de casas onde viveram judeus mortos pelo regime nazista. Existem delas mais de 60 mil em toda a Europa e trazem o nome, a data de nascimento e o dia em que a vítima foi levada ao campo de concentração (assim relata Karina Gomes repórter da DW Brasil e DW África e mestre em Direitos Humanos).
Já que no presente, pelo que os números, tabelas, relatórios, platôs, picos, indicam, nós não estamos sabendo lidar com o combate ao vírus – furando tudo quanto é instrução de saúde…já que é assim, por anos a fio precisaremos explicitar, clarificar, esmiuçar o que foi o 2020, período de tempo suficiente para “inspirar” expressões do tipo: “que ano é esse, meu Deus…temos que riscar do calendário, apagar da memória” etc. etc. etc. Como se fosse fácil escrever um livro, registrar uma narrativa, mandar para edição, disponibilizar para venda e depois querer recolher tudo por arrependimento. O que foi está traçado, com caneta de tinta inapagável, escrito por nós.
No entanto, sempre é tempo! Estamos aqui, eu escrevendo e vocês lendo. Existimos em 2020! Além dos governantes, dentre os quais muitos têm contribuído para a feitura de memoriais mórbidos, dependerá de nós estabelecermos a quantidade de “pedras de tropeço” que vamos querer fincar em frente às casas brasileiras (isso sem falar nos sem teto, que também historicamente ocultamos). O 2020 vai passar, é criação humana a virada. Mas, também é humana a oportunidade de se aprender com os próprios erros! A ocasião é agora!
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