O Supremo Tribunal Federal terá que se posicionar sobre a constitucionalidade da tese jurídica da legítima defesa da honra. O Partido Democrático Trabalhista acionou o STF através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 779, com o argumento de que, embora não haja previsão na legislação brasileira, alguns trechos do Código Penal e do Código de Processo Penal estão abrindo brecha para que tribunais do júri absolvam feminicidas. Ao decidir, o Supremo deve pôr fim a uma controvérsia que há muito tempo domina o mundo jurídico.
Pelo argumento da legítima defesa da honra, uma pessoa, normalmente um homem, pode matar a outra para proteger sua honra, o que geralmente acorre em razão de uma traição em uma relação afetiva. O PDT sustenta que qualquer interpretação de dispositivos infraconstitucionais que admita a absolvição de assassinos de mulheres por legítima defesa da honra não é compatível com os direitos fundamentais à vida e à não discriminação das mulheres nem com os princípios da dignidade da pessoa humana.
Ainda na década de 1970, a legítima defesa da honra ganhou destaque nacional por ter sido a principal argumentação dos advogados de Doca Street, assassino confesso da socialite Ângela Diniz. Já na época, a tese foi amplamente criticada por movimentos feministas, que reagiram com manifestações e protestos, criando o slogam “quem ama não mata”. No entanto os jurados do tribunal chegaram a absolver o empresário. Mais tarde, porém, após enfrentar um segundo julgamento, ele teve que cumprir pena de prisão.
Embora apareça anacrônica, até hoje a tese ainda é utilizada em tribunais do júri brasileiros e, no ano passado, pouco antes do Natal, acabou sendo legitimada depois que a Primeira Turma do STF rejeitou a realização de um segundo julgamento contra um homem que foi absolvido pelos jurados após ter matado a mulher a facadas por suspeita de traição. O Ministério Público apelou, argumentando que a decisão contrariava as provas apresentadas, e o Tribunal de Justiça de Minas determinou a realização de um novo julgamento. A discussão jurídica foi parar no Supremo.
Apesar de o debate principal se tratar do limite da soberania dos veredictos atribuída ao Tribunal do Júri, uma vez que a lei autoriza ao jurado julgar apenas com base em sua íntima convicção, a decisão da 1ª Turma do STF acabou impactando o entendimento que se pode ter em relação ao feminicídio, ao rejeitar a realização de um segundo júri contra um homem que foi absolvido pela tese da legítima defesa da honra.
Apenas no primeiro semestre de 2020, quase 650 mulheres foram mortas no Brasil por questões relacionadas ao gênero. Em dezembro, o assassinato da juíza Viviane Vieira, atacada a facadas pelo ex-marido na frente das filhas, serviu para mostrar que a violência contra a mulher está longe de ser resolvida. Ao julgar a ADPF 779, o STF pode impedir que feminicidas se utilizem da tese da legítima defesa da honra nos tribunais de júri e ajudar a conter esta verdadeira tragédia que coloca o país entre os cinco mais violentos do mundo por assassinato de mulheres em ambientes domésticos.