O perfil do homem cordial, traçado por Sérgio Buarque de Holanda, não condiz com a realidade das ruas no Brasil. Não que o brasileiro seja um intimidador ou marcado por uma violência natural, mas fica evidente que a situação não é bem assim nos tempos de hoje. A morte do congolês Moïse Kabagambe, na semana passada, perto de um quiosque nas areias da Barra da Tijuca, é a face mais emblemática de uma situação para a qual a sociedade tem fechado os olhos ou se afastado da discussão. O fato se agrava com as investigações abertas pela própria Polícia Militar em torno de suposta intimidação aos parentes das vítimas feitas por militares. Em princípio, a PM fluminense chegou a afirmar que a Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, que investiga o caso, era responsável pela apuração. Ante a repercussão, abriu a investigação própria.
Moïse foi mais um entre tantos outros que são agredidos ou mortos nas madrugadas das metrópoles, numa banalização da violência urbana que afeta, principalmente, aqueles sem meios para reagir ou protestar. Imigrante, veio com a família para fugir da violência de seu país. Encontrou a morte no que seria o seu paraíso. O Rio de sol, céu e mar está mais na canção do que nos fatos. Muitos outros, aliás, sem elucidação. Na mesma semana, um sargento da Marinha matou o vizinho com três tiros por suspeitar tratar-se de um ladrão. Era seu vizinho. O militar disse que foi acometido de forte emoção e disparou. O vizinho era negro, estava sem a chave e estaria tentando acionar a campainha.
A pandemia exacerbou os problemas sociais do país, e o número de indigentes se multiplicou pelo país afora, o que exige políticas públicas mais eficientes e debates permanentes para rever tal cenário. Esses personagens, além da violência social, correm o risco permanente da violência física.
A solução, é fato, não uma questão simples. O país ingressou num ritmo econômico que se desdobrou em diversos problemas que vão além do viés social. A inflação na casa de dois dígitos recuperou velhos fantasmas, e as consequências atingem todos os segmentos, agravando ainda mais a situação dos que menos podem.
O arrefecimento da pandemia, que aponta para o fim do túnel, ainda não permite um retorno ao novo normal, sobretudo por exigir comprometimento coletivo, mas reverter os dois anos de perdas de vidas e na economia é um projeto que deve ocupar, sobretudo, as discussões com os envolvidos na corrida eleitoral, pois há necessidade de mudar atitudes que vão desde o enfrentamento à violência, que mata vários Moïses a todo o tempo, à reversão das incertezas que comprometem os avanços que já se fazem necessários também na economia, pois esta, quando vai bem, produz efeitos positivos nas demais instâncias, inclusive na democracia.