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Negros são esquecidos na história oficial

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Carla, Giovana, Jussara e Mariana, unidas a favor de uma nova História da população negra (FERNANDO PRIAMO/18-11-15)

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Comemorado hoje, 20 de novembro, o Dia Municipal da Consciência Negra está muito perto de se tornar feriado municipal. A reserva da data em homenagem ao líder negro Zumbi dos Palmares é vista como alento aos esforços de conscientização e à luta pela igualdade racial em um país que insiste em negar a existência de uma cultura racista e em silenciar a história da população negra. Tal história ainda aparece isolada nos currículos escolares Brasil afora e no cotidiano das cidades. As dificuldades em retratar o passado ficam ainda mais evidentes quando o foco se vira para as realidades de um município como Juiz de Fora. “Remontar a história do negro em Juiz de Fora é quase que achar um diamante”, classifica a historiadora e integrante da Candaces – Organização de Mulheres Negras e Conhecimento, Mariana Gino.

“As pessoas acham que a história de Juiz de Fora é a partir de 1850, quando vieram os primeiros imigrantes europeus para cá”, afirma. Na contramão do discurso usual, a historiadora lembra que existia um grande fluxo de escravos na região no período que antecedeu a abolição, em 1888. “A região fazia parte do Caminho Novo, e a maioria do contingente de produtos que vinha de Ouro Preto e Mariana tinha que passar por Juiz de Fora até chegar no Rio de Janeiro. E quem é que levava? Não eram os brancos. Eram os negros”, conta, lembrando o povoado de Santo Antônio do Paraibuna, que se estabeleceu por volta de 1713. “Falar que Juiz de Fora não era uma cidade escravocrata é impossível, mas a história é contada por aqueles que detêm o poder. Estes, infelizmente, não são os negros”, finaliza.

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[Relaciondas_post]Psicóloga e autora do livro “Negras memórias da Princesa de Minas”, Gilmara Mariosa também rememora o passado escravocrata em seus estudos. “No início da fundação da cidade, os negros eram 60% da população. O primeiro pároco da cidade, Padre Tiago de Mendes Ribeiro, era negro. Foi o primeiro vigário da Paróquia de Santo Antônio do Paraibuna, em 1852. O fato é ignorado. Assim como também é silenciado o fato de que Juiz de Fora teve uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, formada por escravizados e libertos, que ajudaram a construção da Igreja do Rosário no Bairro Granbery, no final do século XIX.”

Gilmara destaca a existência de um quilombo na região do Dom Bosco, conhecido por “Quilombo da Serrinha”, que surge nos relatos orais da população do bairro que é, em sua maioria, negra. “A participação dos negros fica sempre relegada à escravidão, os protagonistas são ‘invisibilizados’.” Para a professora Giovana Castro, também do Candaces, as poucas informações sobre os negros na cidade é alimentada pela cultura do racismo. “A história de Juiz de Fora sempre silenciou acerca da participação da população negra. Há uma censura prévia na forma como é contada. Ainda quer se dar um ar europeu a Juiz de Fora, como uma cidade estabelecida por alemães. Não se conhece esse passado porque a cidade é racista.”

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Silenciamento e racismo

O silenciamento acerca das conquistas e da participação dos negros na consolidação do país é visto por especialistas como um fenômeno concomitante ao racismo. “O negro sempre esteve e está ausente até hoje. A imagem do negro é caricatural e está associada sempre aos horrores do cativeiro. Evocar as histórias de luta, da vida cotidiana e a recriação de nossas raízes africanas pode ser o caminho contra o racismo e o preconceito”, considera a professora da UFRJ, Warley Costa.

Um passo para uma real igualdade racial passa pela admissão de que muitos brasileiros praticam e aceitam atos cotidianos de racismo, como lembram as integrantes do Candaces. “Se é o negro que chega ferido em um hospital, perguntam: ‘o que ele fez’? Se é um branco: ‘o que fizeram com ele?'”, compara Giovana. “Essa é a sutileza da linguagem racista naturalizada”, lembra a professora e coordenadora pedagógica da rede municipal de ensino, Jussara Alves, citando expressões recorrentes. “Quando a coisa está ruim, a coisa está preta. Quando o serviço está ruim, é serviço de preto. Falar mal de alguém, ‘denigre’ a imagem. A mulata é tipo exportação. Por aí vai…”

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Diante de tantos exemplos, Giovana sintetiza os problemas provocados por práticas racistas que insistem em permanecer invisíveis aos olhos de muitos brasileiros, como o ‘óbvio ululante’ do dramaturgo Nélson Rodrigues, que, em 1946, abordou temáticas raciais em sua peça “O anjo negro”. “O que precisamos é de um plano de ação e de a humanidade reconhecer que estamos matando nossos jovens diariamente exatamente por nossa incapacidade em reconhecer os danos do preconceito. A população negra sofre e adoece porque é alvo cotidiano da exclusão e do racismo.”

Feriado deve ser sancionado

Aprovada na Câmara durante a semana, a proposta de feriado no dia 20 de novembro homenageia o aniversário de morte do líder Negro Zumbi do Palmares. De autoria do vereador Roberto Cupolillo (Betão, PT) a legislação depende apenas da sanção por parte do prefeito Bruno Siqueira (PMDB), que deve ser definida hoje. Único negro no panteão de heróis nacionais da história dita oficial, Zumbi liderou o Quilombo dos Palmares e é considerado símbolo da resistência anti-escravagista. A reverência a seu nome é vista como iconográfica.

Para a psicóloga Gilmara Mariosa, o líder negro funciona como um símbolo importante para a população negra que sofre com ausência de autorreferências no cotidiano social brasileiro. “Conhecer a sua história, sua cultura e suas tradições é importante para os negros e negras terem a possibilidade de elevar sua autoestima, melhorar sua autoimagem, partindo do reconhecimento de seu valor e da riqueza de suas tradições. Também possibilitará o processo de empoderamento, que irá gerar saúde psíquica. Tudo isso contribui para o enfrentamento ao racismo.”

Por uma nova lição nas salas de aula

A professora Jussara Alves, também integrante da Candaces, se dedica, em Juiz de Fora, ao fomento à aplicação da Lei 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do ensino de história afro-brasileira. Doze anos após a promulgação da legislação, a professora afirma que ainda existem resistências a sua plena implantação. “Muitas vezes, nas reflexões propostas, alguns educadores se percebem racistas e têm dificuldades em desenvolver esse trabalho.” Sem o aprofundamento adequado, os obstáculos para o incremento do debate também atingem alunos, inclusive crianças negras. “Alguns não têm essa identidade bem trabalhada e ainda negam a negritude por não terem entendido e nem compreendido o valor de sua ancestralidade.”

O chamado “branqueamento” da história dita oficial é visto como principal entrave na remontagem da participação dos negros na consolidação do país. “O negro seguiu marginalizado na pós-abolição e suas histórias de luta e resistência foram silenciadas na História do Brasil Republicano”, ressalta Warley da Costa, professora de Didática de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A professora Giovana Castro faz um resgate histórico desses obstáculos. “Não tive qualquer tipo de contato com a história ligada à população negra que não fosse em referência à escravidão. Quando iniciei no ambiente profissional, deparei com o mesmo modelo dos anos 1980.” Assim, os esforços de profissionais país afora ainda não resultaram em tratamento curricular equânime, como exige o bom-senso e a legislação federal. “Mesmo com a aprovação da lei e a remodelação dos livros didáticos, o negro ainda é um capítulo. A segregação é nítida. Tudo isso resulta em dificuldades gravíssimas de identidade das crianças negras”, reforça Giovana.

As dificuldades não se resumem aos ensinos iniciais. Também professora de ensino superior na rede privada de Juiz de Fora, Giovana ressalta que o desenvolvimento de didáticas ligadas a temas de cunho afro-brasileiros é ainda mais complicado a partir da graduação. “Dou aula em uma faculdade particular, e é uma das que se abrem ao diálogo. De forma geral, há um silenciamento total com relação a discussões sobre as relações raciais no ensino superior. Quanto mais elitizado é o curso, menos se toca nesse assunto.”

Diante da resistência de um sistema que ainda apresenta claros vieses racistas, os negros precisam lutar pelo reconhecimento de sua história ainda nos dias de hoje. “Abrimos a porta da senzala, por dentro. Metendo o pé. Ninguém deu a chave para a gente. Mais do que nos silenciar, contam a nossa história. Impedem que nós verbalizemos o fato de que temos influência histórica e de que desde o primeiro navio negreiro que aportou por aqui houve resistência. Tudo isso resulta em dificuldades gravíssimas de identidade das crianças negras.”

Para corrigir falhas históricas, o professor da UFRJ, Flávio Gomes, defende uma revisão ampla da história brasileira. “Com ela, vamos resgatar tanto a experiência de mais de três séculos de africanos e seus descendentes, assim como a experiência do pós-abolição e mesmo a história da redemocratização, com o papel de intelectuais e organizações negras nas lutas antirracistas e pela a democracia. Assim a história do Brasil é a história dos afrodescendentes. São inseparáveis e nunca um capítulo a parte.”

 

Rompendo as fronteiras da escola

As professoras ouvidas pela Tribuna destacaram algumas ações em prol da conscientização acerca da cultura negra desenvolvidas em escolas municipais da cidade. Uma dessas mobilizações aposta na música e na dança como ferramenta de empoderamento. Este é foco do projeto “Soul Black do Ben”, que têm atividades na Escola Municipal Teresa Falci, no Bairro Nova Era. “É um projeto que nasce na escola a partir da resistência de alguns professores em discutir a cultura e a história da população negra, sob a justificativa de que não há racismo no Brasil”, lembra a professora de educação física Carla Carvalho, que coordena o projeto ao lado dos também docentes Giovana Castro e Herbert Hischter.

Segundo Carla, o projeto vai além da dança e aborda discussões e oficinas sobre a cultura afro-brasileira. Entre alunos e ex-alunos, o projeto reúne cerca de 40 pessoas de 12 a 30 anos, e já rompeu as fronteiras da escola. “Eles multiplicam isso na comunidade. Com isso, os jovens estão mudando até suas posturas. As meninas vão deixando de alisar o cabelo. Param de se mutilar. É uma questão de empoderamento na essência da palavra”, resume Giovana.

 

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