Site icon Tribuna de Minas

109 camponeses mortos ou desaparecidos durante ditadura em MG

PUBLICIDADE
Movimento sindical em Minas, entre 1970 e 1980, fortaleceu a luta contra a opressão do homem do campo. Na foto, homenagem a sindicalista morto em 1984. (Foto: Covemg | Fonte: Acervo Coseg, Estado de Minas, 19/12/1984, P1)

A Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg) lança, nesta quarta-feira (13), o relatório final de seus trabalhos, em audiência pública na Assembleia Legislativa (ALMG), em Belo Horizonte, a partir das 9h30, e em solenidade marcada para o Palácio da Liberdade, às 16h30. A Tribuna teve acesso ao resultado das apurações da Covemg. Além de destacar abusos praticados por agentes do Estado durante o período da ditadura militar contra segmentos da população urbana e até indígenas, um dos principais avanços da comissão se deu no que diz respeito a violações de direitos humanos cometidos contra trabalhadores rurais e mobilizações camponesas em torno da luta pelo acesso à terra, que resultaram em execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais. Segundo o documento, tais perseguições provocaram a morte ou o desaparecimento de, pelo menos, 109 pessoas.

Para o colegiado, as violências contra camponeses são historicamente excluídas da contabilidade oficial das vítimas da ditadura militar e dos processos de reparação, “de modo a aprofundar a invisibilidade dos conflitos e das resistências políticas”. Aos olhos da Covemg, as violações eram sistemáticas e relacionadas à atuação de agentes públicos e instituições do Estado em disputas pela terra, de forma ativa ou passiva. “A Covemg buscou identificar o envolvimento do Estado nessas violações, seja por omissão seja por atuação direta – isolada ou em parceria com agentes privados – dos responsáveis pelo cumprimento da lei (Polícia Civil, Militar ou Federal) ou no exercício da função pública vinculada aos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário”, afirma o texto.

PUBLICIDADE

Dez dos casos foram registrados na Zona da Mata. Aliás, um município da região, Miradouro, aparece na segunda colocação no que diz respeito ao número de mortos e desaparecidos identificados pela Covemg. Com sete casos levantados, a cidade ficou atrás apenas de Varzelândia, na Região Norte. Também foram percebidas ocorrências em Cipotânea, São Francisco do Glória e Tombos. Todos os episódios em questão ocorreram entre as décadas de 1970 e de 1980, momento de crescimento da organização trabalhista e sindical dos camponeses no estado. “O recorte temporal deste estudo compreende os anos de 1961 a 1988, que abrangem o período do governo Jango (o ex-presidente João Goulart) até a promulgação da Constituição de 1988”, ressalta o relatório.

Para a Covemg, nos casos identificados no campo, o envolvimento do Estado em violações de direitos humanos ocorre quando o agente privado instiga um ou mais agentes públicos a praticarem tais violações ou as permite, seja com aquiescência, apoio, omissão ou conivência. O número de vítimas no campo se amplia quando se leva em consideração prisões ilegais e arbitrárias, além de torturas, maus-tratos, atos discriminatórios, abusos de autoridade, perseguições políticas, ameaças à vida e cerceamento do acesso à Justiça.

PUBLICIDADE

 

Violações e violências identificadas na Zona da Mata

O texto ainda detalha casos identificados de morte ou de desaparecimento percebidos na Zona da Mata. A perspectiva é de que a zona rural de municípios como Miradouro e Tombos foram focos de violações. O relatório da Covemg traz depoimento de José Maria dos Santos, primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Miradouro, que comenta a origens dos conflitos entre fazendeiros e trabalhadores rurais da região. “Como é que começa o conflito? Uma série de fazendeiros na região nunca tinha sido contestada por ninguém. (…) Aí, o sindicato começa a orientar e conduzir as primeiras ações trabalhistas (…), e aí começam as primeiras retaliações.” Retaliações estas que, para a comissão, teria a participação velada ou não de agentes do Estado.

PUBLICIDADE

Em um dos casos relatados, que teria ocorrido em 1977, em Miradouro, mãe e filho foram mortos em disputa de terra. Maria Bernardina e Antônio “Velho” possuíam uma pequena propriedade na localidade de Monte Alverne, onde estavam quando um grupo armado visitou a residência à noite chamando por Antônio, que foi esfaqueado. Após ouvir o barulho, Maria foi observar o ocorrido e também acabou degolada. Como Antônio “Velho” era solteiro e não tinha filhos, testemunhas da época acreditam que os mandantes do crime tinham o intuito de se apossar de suas terras.
A leitura é de que os crimes iniciaram uma era de violência, sob as vistas grossas do regime militar, na região de Miradouro, Araponga e Ervália, após a instalação de uma família de fazendeiros no local. Segundo documentos encontrados nos arquivos do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) e da Comissão Pastoral da Terra Minas Gerais (CPT-MG), desde que se instalaram na localidade, tal família passou a espalhar o medo e a ameaçar os moradores da região que se colocassem em seu caminho.

Para comissão, JK foi vítima de atentado

Covemg questiona o fato de os laudos iniciais trazerem fotos do Opala sem avarias na traseira, sendo que outras imagens já mostram estragos. (Foto: Covemg)

O relatório final da Covemg reforça os entendimentos de que o ex-presidente Juscelino Kubitschek tenha sido vítima de um atentado e não de um acidente comum de trânsito em 22 de agosto de 1976, quando o Opala em que ele estava colidiu com uma carreta Scania-Vabis, que trafegava na Via Dutra, na altura de Resende (RJ). Para isto, o colegiado voltou a visitar arquivos, documentos e materiais relacionados à Comissão Nacional da Verdade (CNV) e às comissões Estadual e Municipal da Verdade de São Paulo, além de outros estudos e documentos bibliográficos.

PUBLICIDADE

A comissão apontou oito pontos que considerou contraditórios ou não totalmente esclarecidos, o que reforça a leitura de que não houve um acidente. Entre os itens destacados como incongruentes estão o fato de não ter ocorrido interdição da pista na Dutra após o acidente; a aplicação de exame toxicológico do corpo de Juscelino, mas não do condutor do Opala; o fato de laudos iniciais e complementares mostrarem fotos traseiras do Opala sem avarias; a realização de perícia, em 1996, para avaliação de explosão e ou sabotagem, em veículo com chassi diferente do Opala de 1976; entre outros.

“As contradições e divergências encontradas revelam inconsistências e apontam dúvidas. Para desvendar as circunstâncias exatas do ocorrido, diante da necessidade que o Brasil siga o caminho da Justiça, é preciso que todos os arquivos do período da ditadura militar sejam abertos e disponibilizados de acordo com a legislação do Direito à Informação”, considera o relatório, que ressalta que, em 1976, “o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar.”

Neste sentido, o texto destaca o fato de que vários oposicionistas e lideranças morreram em datas próximas e sob condições suspeitas. Entre eles, além de JK, estão João Goulart (em 06/12/1976) e Carlos Lacerda (21/05/1977) – que propuseram a Frente Ampla, com apoio de Kubitschek – e a estilista Zuzu Angel (14/04/1976), além de figuras políticas sul-americanas como Orlando Letelier, ex-ministro de Salvador Allende no Chile e Juan Jose Torres, ex-presidente da Bolívia. “Qual seria a probabilidade real de tantas mortes de lideranças no Brasil e outros países acontecerem em tão curto espaço de tempo?”, questiona o relatório da Covemg.

Relatório reforça JF como ponto de tortura e de morte

Os trabalhos da Comissão da Verdade de Minas Gerais também abordaram o aspecto urbano, voltando a reafirmar Juiz de Fora como um centro de tortura durante os chamados anos de chumbo. O relatório ratifica a existência de vítimas fatais do Estado durante o regime militar. Ao todo, 17 pessoas, com idade entre 19 e 67 anos, perderam a vida em municípios mineiros – um deles em Juiz de Fora.

A vítima em questão é o servente de pedreiro e pintor Milton Soares de Castro, que integrava o Movimento Nacional Revolucionário (MRN). Gaúcho, ele faleceu aos 26 anos. O militante veio para Minas Gerais para se vincular à luta armada e integrar uma organização guerrilheira na Serra do Caparaó. Após denúncias de cidadãos locais, Milton Soares acabou preso – ao lado de outros integrantes de seu grupo – e transferido para a Penitenciaria de Linhares, em Juiz de Fora, entregue à 4ª Região Militar. Após dois interrogatórios, no dia 28 de abril de 1967, ele foi supostamente encontrado morto durante a revista das celas. A causa da morte apontada foi suicídio.

No auto de exame cadavérico do corpo de Milton, realizado no Hospital Geral de Juiz de Fora, foi registrado que a causa da morte seria asfixia por enforcamento. Após o exame, o corpo foi dado como desaparecido. Em abril de 2002 – aniversário de 35 anos da morte de Milton -, reportagem da Tribuna, feita pela jornalista Daniela Arbex, encontrou o nome do guerrilheiro no livro de óbitos de 1967 do Cemitério Municipal de Juiz de Fora. Ele foi enterrado como indigente, sendo a contratação da sepultura feita por um sargento. Em 2014, o jornal teve acesso a documentos originais no Superior Tribunal Militar em Brasília. Com 79 páginas e 16 fotografias, o arquivo mostrava, inclusive, imagem do corpo de Milton. Na ocasião, especialistas, com base nas imagens, concluíram que não era possível que o guerrilheiro tivesse cometido suicídio.

 

“Manoel do A.”, vítima na Guerrilha do Araguaia

Por outro lado, o relatório aponta que, pelo menos, 49 pessoas nascidas em Minas Gerais morreram em outros estados, por conta de abusos do Estado durante a ditadura militar. Dez delas, no evento que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia, em que foi registrado o único caso envolvendo uma pessoa nascida em Juiz de Fora na lista apresentada no documento da Covemg. Trata-se de Rodolfo de Carvalho Troiano, também conhecido como “Manoel do A”. Segundo o texto, “‘Manoel do A’ foi morto após denúncia de um camponês, quando foi entregar o filho de um trabalhador rural à casa de seus tios.” Ele morreu aos 25 anos.

Centros de tortura

O relatório ainda confirma que centros civis e militares localizados em Juiz de Fora foram utilizados como espaços de tortura, que teria ocorrido na Delegacia de Juiz de Fora; no 10º Regimento de Infantaria; no Quartel-General da 4ª Região Militar; na Penitenciária Linhares/José Edson Cavalieri; no 2º Batalhão da Polícia Militar; e na Unidade da Polícia Federal.

O texto destaca as chamadas cartas de Linhares, em que presos políticos denunciaram abusos na unidade prisional localizada em Juiz de Fora. Em um dois documentos disponibilizados no relatório, consta o nome do ex-prefeito de Belo Horizonte e pré-candidato ao Governo do Estado, Márcio Lacerda (PSB). O corpo do documento traz ainda imagens com fichas policiais de Lacerda, do atual governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT) e da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Exit mobile version