Já de olho nas eleições municipais de 2020, partidos políticos buscam capacitar mulheres para disputarem de fato os cargos públicos e não apenas preencherem a cota de gênero estipulada, por lei, em 30%. A movimentação na arena política também está ligada à obrigatoriedade surgida, no ano passado, de as siglas destinarem também 30% dos recursos do Fundo Eleitoral às campanhas de filiadas. Outro fator que promove a corrida é o fim das coligações nas eleições proporcionais, com estreia no ano que vem, forçando cada legenda a indicar aquelas que concorrerão.
As iniciativas para aumentar a representatividade feminina na política vão contra as candidaturas laranjas. Mas as denúncias de concorrências fictícias em 2018 mostram que ainda há um longo caminho a seguir para que as integrantes da maior parte do eleitorado brasileiro consigam se eleger na mesma proporção dos homens. Levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revela que, no último pleito municipal, em 2016, 89% dos 16.131 concorrentes que não obtiveram um voto sequer eram mulheres. O fato de 14.417 candidatas terem votação zerada reforça que elas compuseram as chapas somente para cumprir a legislação.
Décima e mais recente mulher a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de Juiz de Fora, a deputada estadual Sheila Oliveira (PSL) está disposta a mudar essa realidade, capacitando lideranças políticas. Batizado de Mulheres Aurora, o programa já reúne na cidade mais de 200 interessadas, com foco nas próximas eleições municipais. “O nosso projeto não tem vinculação partidária alguma. Estamos conversando independentemente disso, passando para elas questões genéricas. Temos representantes de movimentos LGBT, de vários segmentos e ideologias partidárias.”
Apesar de admitir as dificuldades organizacionais, Dandara Felícia Silva Oliveira, integrante do diretório municipal provisório do PSOL, afirma já ter começado um “trabalho de formiguinha”, para fortalecer a participação feminina no pleito de 2020. “O PSOL é incipiente em Juiz de Fora, temos, no máximo, umas 15 mulheres que são atuantes. Mas pretendo, até o início do próximo ano, reunir aquelas que querem se candidatar às eleições municipais. Ainda que esse trabalho seja de uma dar força para a outra, para aumentar a representatividade.”
Única mulher na atual configuração da Câmara Municipal, a vereadora Ana Rossignoli (Ana do Padre Frederico-MDB) diz que seu partido está se articulando para fortalecer as candidaturas femininas. Um encontro foi realizado nos dias 14 e 15 de agosto, em Brasília, com o tema “Mulher, Política e Cidadania”. O evento, aberto a todas as filiadas ao MDB, pediu a presença de prefeitas, vices, vereadoras e pré-candidatas. “Também há cursos preparatórios incentivando mulheres a se candidatarem e as empoderando para a vida política”, revela Ana. “Mas eu acho que a mulher ainda é muito medrosa, não se encoraja, acaba ficando submissa, ainda acha que a política é para homem, e o homem tem certeza que a política é só pra ele”, dispara em seguida.
Com o projeto “Elas por Elas”, o PT busca o envolvimento feminino não apenas em períodos eleitorais. Membro da Executiva municipal do partido, Laiz Perrut conta que a iniciativa faz parte da Secretaria Nacional de Mulheres vinculada à sigla. Em julho, também houve encontro estadual em Belo Horizonte já mirando o próximo pleito. A agenda contou com programação voltada para mulheres negras petistas e festival misturando música, arte, poesia, teatro e gastronomia.
Capacitação técnica
Na chefia dos Executivos municipal e estadual, o PSDB e o Partido Novo também apostam na capacitação política de mulheres. Para a tucana e estudante universitária Talita França, que já foi presidente do grupo Juventude e representante do PSDB Mulher Zona da Mata, embora ainda não haja planos concretos para a próxima disputa pela Prefeitura e pelas cadeiras na Câmara, o trabalho em torno de lideranças femininas estará em cena. “Além de participação em projetos sociais, também já efetuamos curso de capacitação técnica. No momento, não estamos tão atuantes, pois o resultado da última eleição foi um pouco pesado para nós. Mas com a convenção do partido, acredito que, em breve, retornaremos à ativa.”
Há cerca de um ano no Novo, a diretora de escola pública Laíde Oliveira Rocha afirma que a pré-seleção para pretensos candidatos “não é exclusiva para mulheres, nem tampouco para preencher cotas”. “O fato do Novo ser o único que não usa fundo partidário já derruba a tese que esse recurso poderia ser desviado para outras campanhas dentro do partido.”
77 milhões de eleitoras
Conforme o TSE, são mais de 77 milhões de eleitoras em todo o Brasil, ou 52,5% do total de 147,5 milhões. Apenas 9.204 candidatas concorreram a um cargo eletivo em 2018, quando houve disputas estaduais e federais. Se o número já era baixo, o resultado, obviamente, foi mais: 290 acabaram eleitas. Mesmo assim, houve aumento de 52,6% em relação ao resultado de 2014, quando 190 mulheres assumiram os cargos em disputa. Enquanto, no ano passado, as escolhidas corresponderam a 16,2% dos 1.790 eleitos, em 2014, elas equivaliam a 11,1% do total de 1.711.
A representatividade delas na Câmara dos Deputados também evoluiu em 2018, com 77 parlamentares, 51% a mais que no último pleito, que levou 51 mulheres à Casa. No mesmo ano, as assembleias legislativas ganharam 161 representantes femininas, ou 41,2% acima de 2014, momento em que 114 mulheres obtiveram cargos de deputada estadual. No Senado Federal, sete foram eleitas, assim como em 2010, representando 13% do total. Um ranking de participação feminina no parlamento elaborado em 2017 pela ONU Mulheres, em parceria com a União Interparlamentar (UIP), colocou o Brasil na 154ª posição, no universo de 174 países analisados.
“Aptas a disputar de igual para igual”
Até julho, as inscritas no “Mulheres Aurora” foram entrevistadas individualmente, informando possível experiência política e intenção de concorrer a vereadora ou prefeita. Em outra fase, há aulas sobre diversos temas, como gestão de equipe e projetos, direito constitucional, teoria geral do Estado e comunicação eleitoral. Mesmo quem não pretende disputar cargo público pode ser capacitada pelo programa. Após a eleição, será feito um acompanhamento das eleitas, “sob os pilares de ética, transparência e participação popular”.
“Esse projeto é uma forma de capacitar mulheres para realmente estarem disputando eleição, independentemente da existência de cotas, para terem consciência da importância da representatividade feminina na política e do papel que devem exercer na sociedade. Queremos que fiquem aptas a disputar de igual para igual. Muitas vezes não concorrem por insegurança, por medo, por não saberem de seus direitos relacionados à Lei Eleitoral ou por desconhecimento. Acham que é muito difícil, quando na verdade não é. Todas nós somos capazes”, avalia a deputada Sheila Oliveira (PSL).
Ela mesma é um exemplo disso. Recebeu cerca de dez mil votos para vereadora em 2016, quando estava filiada ao PTC. Deixou o mandato em 2018 para disputar um cargo de deputada estadual, também conquistado. “A dificuldade que encontrei nos dois anos como vereadora é muita relacionada ao preconceito. A maioria que chega em ambiente predominantemente masculino fica acuada, se sentindo sozinha, isolada. Mas você tem que lutar por seu espaço.”
Sheila acredita que o fim das coligações vai impactar o próximo pleito. “A partir do momento que o partido lança uma chapa capaz de atingir o coeficiente eleitoral, acabou essa situação de colocar mulher só para preencher as cotas.” Outro ponto a favor, na visão dela, é a obrigatoriedade do repasse de 30% da verba do Fundo Eleitoral. “Nós vivemos desigualdade patrimonial. Muitas mulheres deixam de se candidatar por dificuldade financeira, e não é justo.”
‘Os homens não conseguem ver as mulheres em situação de poder’
O objetivo do PSOL, segundo a representante Dandara Felícia, é atuar de forma coletiva. “Queremos concorrentes mulheres que trabalhem com mulheres. Queremos uma sociedade mais justa para todos, e não dominada apenas por uma classe”, dispara a travesti, preta, funcionária pública e ativista dos direitos humanos. Os obstáculos impostos pelo capitalismo e pelo machismo são, na visão dela, os maiores desafios. “Enquanto não conseguirmos vencer a barreira dos homens que não conseguem ver as mulheres em situação de poder, que colocam candidatas laranjas, não necessariamente teremos um avanço. A sociedade criou para as mulheres um posto de domicílio em casa. A mulher não se vê como figura pública que pode ocupar postos de poder e decisão. E quando ela ocupa, se sente ameaçada.”
Ela complementa que a política é dominada por homens, brancos, de meia idade, heterossexuais, cis-heteronormativos. “Com isso, culposamente, esses homens fizeram com que as mulheres não se sentissem confortáveis de estar nesses espaços.” O problema, segundo ela, é acentuado pela questão organizativa. “Temos dificuldade de nos reunir dentro do partido, porque as mulheres têm uma sobrecarga de trabalho muito grande. Construímos política e falamos nos lugares onde a fala é concedida sobre a importância da ocupação verdadeira dos postos, principalmente pelas negras e transexuais, porque esse é um lugar que nos é negado desde sempre.”
Na opinião dela, destinar 30% dos recursos do Fundo Eleitoral às mulheres não faz ninguém vencer. “Sem dúvida, é uma ajuda. É melhor fazer campanha com dinheiro do fundo do que com nada. Mas o simples fato do financiamento não vai ajudar as mulheres a ter coragem, porque não somos vistas nesse lugar de poder e decisão. Marielle foi morta, isso é muito representativo.”
“Tiravam até o som do microfone para eu não falar”
A parlamentar Ana Rossignoli (Ana do Padre Frederico-MDB) lembra ter sempre agido com segurança e firmeza para conseguir emplacar seus projetos. Estudar muito antes de apresentá-los também faz parte da estratégia para não fraquejar diante de uma bancada majoritariamente masculina. “Entrei em 2009 e, nesses 11 anos, estou há nove sozinha. A Sheila (delegada-PSL) ficou dois anos”, detalha, se referindo à saída da colega para a disputa na Assembleia Legislativa.
“Não tenho problemas, tenho gênio muito fácil. Procuro me relacionar bem e ser conselheira para criar um ambiente harmônico”, avalia, certa de que sua idade contribui para sua credibilidade. “Todos eles são mais jovens do que eu e têm um certo respeito, que também conquistei com o tempo. No meu primeiro mandato, tive que ser bem energética no sentido de me fazer ser respeitada. O início foi pesado”, admite.
Diante da sua vasta experiência, Ana vê com cautela a expectativa de reforço feminino nas prefeituras e câmaras municipais. “Eu sou muito realista. O que vai fortalecer a mulher é empoderá-la e dizer que ela vai ser capaz, que não pode entrar no partido para carregar pedra para os homens. Quando fui candidata, tiravam até o som do microfone para eu não poder falar. Mas como tenho tom de voz alto e áspero, porque a vida toda fui educadora, eu falava para o público (sem microfone) e era ouvida.”
Encarando a carreira política “com muita naturalidade e coragem”, a vereadora afirma que nunca quis apenas preencher uma lacuna. “Quando chega na vez da mulher, ela não tem direito de falar. Mas era um ideal, e eu tinha que vencer. Só Deus iria calar minha voz.” Para ela, o machismo na política é reflexo da sociedade. “A discriminação é muito acentuada. Fui uma das fundadoras do MDB Mulher, mas tenho dificuldade de colocar na prática esse movimento. Bom que em âmbito nacional já estão se mobilizando, e vamos aproveitar esse gatilho para fazer ações no estado e na região. Precisamos de mais mulheres na Câmara.”
“Sempre enfrentamos muito machismo”
“O ‘Elas por Elas’ foi lançado pelo PT em 2017, com intuito de impulsionar a participação de mulheres na política e de construir uma plataforma feminista. Foi criado nas eleições de 2018, como forma de dar suporte às pré-candidatas”, explica Laiz Perrut, representante do partido. “Para 2020, está se pensando esse mesmo formato, mas com algumas melhorias, vendo o que deu certo e o que não deu.”
O desdobramento municipal, segundo a filiada, segue as diretrizes nacional e estadual. “Temos mulheres organizadas em coletivos, e a tarefa é muito árdua. Não temos que colocar só 30% de candidatas, mas sempre enfrentamos muito machismo quando falamos disso. Muitos veem como se estivéssemos cerceando o espaço dos homens. Apenas queremos de igual para igual.” Ela enfatiza que as concorrentes não são apenas números. “Queremos qualificá-las e prepará-las para a eleição. Pensar em projeto, planejamento de campanha. Às vezes, tem mulher de algum bairro que quer ser candidata e tem representatividade, mas não consegue se articular politicamente, deslanchar. Isso além da questão financeira.”
Em Juiz de Fora, conforme Laiz, cerca de dez mulheres petistas se reúnem mensalmente. “A partir do encontro estadual, estamos traçando as estratégias municipais.” A gestão dos gastos e os meios de preparar mais representantes femininas são discutidos. “Os recursos vão mais para quem tem mais viabilidade e acabavam indo sempre para as mesmas pessoas. A destinação dos 30% (do Fundo Eleitoral) já foi uma coisa muito boa em 2018, apesar de alguns partidos terem usado mulheres laranjas. Um deputado até foi para rádio falar que essa medida teria que acabar porque estava sendo alvo de corrupção. Mas como vamos tirar esse direito? Só porque alguém o usou para o mal?”, questiona.
Laiz lembra ter feito sua campanha para vereadora em 2016 praticamente sozinha. “As mulheres sempre ficavam sem dinheiro do partido. Acredito que essa cota possa mudar um pouco a vida das candidatas.”
Cadeiras destinadas a mulheres
Experiências anteriores têm trazido boas expectativas para as filiadas do PSDB, segundo a representante Talita França. “O partido tem um segmento próprio para as mulheres, o PSDB Mulher. Na última eleição, tivemos uma equipe boa de tucanas concorrendo por todo o país e, de fato, houve repasse significativo de verbas para auxiliá-las nas campanhas. Elegemos, inclusive, a deputada estadual mais jovem do país, em Alagoas. Em Juiz de Fora, tivemos uma candidata a deputada estadual que recebeu recursos para organizar uma campanha de fato, e não apenas para compor chapa e bater a cota de mulheres.”
Para a tucana, o repasse dos 30% dos recursos para candidaturas femininas “foi uma grande conquista, mas ainda não é o suficiente”. “A dificuldade de se candidatar ou de ter apoio efetivo para uma campanha eleitoral dentro de um partido não se resolve apenas com dinheiro. É necessário que haja, de fato, uma quantidade de cadeiras destinadas a mulheres nos cargos eletivos. Só assim todos os partidos vislumbrarão a real necessidade de pautarem candidaturas femininas. Sem isso, não vamos conseguir atingir o objetivo de ter mais mulheres ocupando cargos de representação.”
Já Laíde Oliveira Rocha (Novo) acredita que “o excesso de fixação no gênero tende a fragilizar a condição feminina.” “O Novo pensa o cidadão em toda sua complexidade de necessidades básicas e sociais, incluindo as ligadas ao gênero.” Na opinião dela, o fim das coligações não vai modificar o cenário. “Uma eleição é algo maior do que a quantidade de mulheres que participarão. A função do legislador é representar todos os cidadãos, homens e mulheres. Ninguém vai legislar somente para o público feminino. O Novo defende a desburocratização e a redução do tamanho e do custo do Estado. Quanto menor a interferência do Estado nas decisões individuais, maior a liberdade e autonomia do cidadão. Essa cota para mim não faz o menor sentido. O candidato não precisa ser mulher para exercer um bom mandato, precisa transcender ao seu próprio gênero e legislar para toda a sociedade.”
”Será necessária uma transformação cultural’
Para a cientista política Christiane Jalles, professora do Departamento de Ciências Sociais da UFJF, as mudanças na legislação para aumentar a participação de mulheres na política não têm surtido os efeitos esperados no Brasil ou aqueles ocorridos em outros países. “Os índices que medem a presença feminina nos legislativos nacionais são consideravelmente baixos, apesar da lei de cotas. Os partidos usaram de inúmeros subterfúgios para driblar a regra.”
A especialista acredita que a obrigatoriedade de destinar 30% do Fundo Eleitoral às campanhas de mulheres deverá modificar tal cenário, caso os partidos sejam efetivamente penalizados ao descumprirem essa lei. “Mas não creio que o fim das coligações nas eleições proporcionais venha a contribuir para aumentar o número de candidatas. Será necessária, na minha opinião, uma transformação cultural que naturalize a presença de mulheres nas esferas pública e política.”
Dessa forma, a professora pensa ser fundamental uma ação proativa das siglas. Para que isso ocorra, segundo ela, é preciso que os partidos brasileiros mudem, inclusive em suas estruturas internas. “Tem pouquíssimas mulheres nas executivas, participando e atuando nas decisões partidárias. Há inúmeros estudos que mostram isso, que não há mulheres nos espaços decisórios internos. Com isso, as questões da participação feminina vão sendo escanteadas.”
A mudança no recrutamento de potenciais concorrentes também é apontada pela cientista política como uma necessidade. “Acho que as candidaturas fictícias de mulheres expõem claramente os limites e as estratégias dos partidos brasileiros. Não de todos, mas de uma gama importante, que trata da representação feminina com desprezo, ainda culturalmente adequada a uma perspectiva patriarcal. Ou seja, o espaço da política não é um espaço para mulheres, é um espaço masculino, para homens.”
Ela lembra que para cumprir a legislação, muitos colocam uma irmã ou conhecida, “sabendo que ela não tem nenhuma chance, porque não vai ter participação no horário eleitoral e nem nos recursos para viabilizar a candidatura”. “Ou seja, eu preencho os 30% da lei de cotas, mas efetivamente essas candidaturas não são concorrentes. Isso tem muito a ver com esse aspecto cultural que eu credito como fundamental: a existência do patriarcalismo nesse domínio masculino das esferas pública e política. Acaba sendo algo que nós mulheres devemos combater cotidianamente.”