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Entusiasta e referência nas artes marciais, mestre Carlos Silva relembra trajetória: “ajudar as pessoas não tem preço”

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“Grande parte das coisas boas que aconteceram na minha vida, eu devo às artes marciais.” A frase de Carlos Eduardo Nunes da Silva, mais conhecido como mestre Carlos Silva, 51 anos, certamente tem reciprocidade de Juiz de Fora. Afinal, a história de um dos principais entusiastas das lutas na cidade se confunde com a trajetória de crescimento das modalidades no município da Zona da Mata mineira durante as últimas décadas. Ao mesmo tempo, resume um sentimento que não apenas ocupa o coração do juiz-forano desde sua adolescência, ainda em 1980, como moldou seu caráter e todos os seus passos profissionais desde então.

Um dos pioneiros na divulgação das artes marciais de contato em Juiz de Fora, o mestre Carlos Silva saiu do Bairro de Lourdes, Zona Sudeste, rodou o país e buscou conhecimento até mesmo de profissionais de outras nacionalidades para auxiliar na introdução de diversos estilos nada difundidos, segundo ele, durante os anos 1970 na sua cidade natal.

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“Na minha infância eu era apaixonado pelo Flamengo, gostava muito do Zico, do Tita. Mas um belo dia, tinha um vizinho e amigo de infância, o Amarildo, e como o muro era muito baixo aqui em casa, eu fui pegar minha roupa pra tomar banho e vi ele treinando taekwondo. Pedi a ele pra me ensinar, foi a primeira vez que vi as artes marciais”, recorda. “Uma das primeiras academias que treinei foi do sensei Anderson Leko Vianna, fundador da Academia Meiji, ainda nos anos 1970, a primeira academia que teve aqui. Mas fiquei pouco tempo, meu pai não tinha condição de pagar a mensalidade. Comecei a fazer bicos pra ter o dinheiro. Assim fui entrando, treinando taekwondo, caratê.”

A partir de 1980, então, Carlos passou a conhecer as filosofias, técnicas e demais características de diversas artes marciais. Nem mesmo a distância o separava da fome de aprendizado. “Abriram uma filial, em Três Rios, da então famosa academia do mestre Emerson Martins. Era de muita fama porque ele também lançava duas revistas de artes marciais e todo mundo dessa época comprava. Aí o mestre Eraldo, grande amigo meu, me levou pra lá pra treinar com o mestre Luiz Silveira. Entrei de corpo e alma no estilo caratê shobu-ryu. Fiquei até o início dos anos 1990 lá, até ir pra São Paulo treinar lutas de contato, porque em Minas Gerais não tinha”, conta.

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Mestre Carlos Silva leva os ensinamentos obtidos nas artes marciais desde os anos 1980 para os dias atuais (Foto: Fernando Priamo)

A união de especializações em seu estilo predileto

Em território paulista, Carlos conheceu a modalidade contato total, assim como o muay thai. Com direito a título de melhor faixa preta em técnicas de chute pela Federação IKF, ele retornou em definitivo para Juiz de Fora em 1990. Antes disso, chegou a abrir sua primeira academia, em 1986, quando faixa roxa em caratê shobu-ryu. Passou, ainda, por kickboxing, boxe inglês e outras modalidades, com especializações em todas. Até conhecer uma das maiores paixões de sua vida: o estilo chakuriki. “Em 1993, surgiu no Japão um evento de kickboxing chamado K1, uma coisa monstruosa pro mundo inteiro, que seguiu até 2010. Era de peso livre, hoje tem alguns de peso leve só. Mas nessa época, quem se dava bem eram os holandeses, pesados, altos. E vi lá que tinha uma grande academia chamada Chakuriki. Comecei a estudar esse sistema. O mestre, Thom Harinck, treinou várias artes marciais, assim como eu, e fundou seu próprio estilo. Então quis trazer isso pra cá.”

Em 1998, interessado em trazer o estilo do grão mestre holandês para o Brasil, Carlos Silva passou a trocar mensagens com Thom Harinck por meio de fax, mesmo sem dominar qualquer língua estrangeira. “Não tinha outra forma como o Whatsapp hoje, a moda era o fax e eu tinha uma aluna que falava inglês. Pedia pra ela fazer os textos. Era muito difícil porque ele queria que eu fosse pra Holanda, mas eu não tinha dinheiro nem falava inglês”, lembra. E a comunicação entre os mestres assim seguiu até meados de 2005, quando o juiz-forano conseguiu trazer um aluno da Chakuriki, Erwin Van Der Meulen, para JF. Neste período, Carlos seguiu evoluindo como profissional, promovendo campeonatos pela região e colecionando reconhecimentos por seu papel no meio. E a aproximação com os holandeses aumentou, bem como o objetivo do “insistente” mestre local.

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“Eu já tinha muitos alunos treinando comigo, mas só poderia criar uma Chakuriki com o aval do Thom Harinck. Nessa época, lembro que ele disse que eu parecia um bull terrier, que é teimoso e é o símbolo da chakuriki, que não desiste. Porque nos falávamos há cerca de dez anos e eu insistia em abrir a Chakuriki Brasil. Aí em 2009 ele veio, fundamos e a academia se tornou uma coisa muito grande”, destaca. “Temos treinadores em diversas cidades do país, a coisa cresceu muito. Já enviamos atletas para a Holanda pra lutar lá. Ano passado mandaríamos mais um, mas a pandemia atrapalhou. Eu queria a Chakuriki porque ela reúne várias artes marciais de contato – o caratê, muay thai, kickboxing, boxe. Temos campeões de todas essas artes.”

A disciplina e o respeito entre mestre e aluno

Carlos carrega consigo filosofias que segue desde seus primeiros dias como amante das artes marciais. “Naquela época, as artes marciais eram uma coisa mágica. Existia um elo entre o mestre e o aluno. Hoje, por ter tanta academia e gente dando aula, isso acabou um pouco. Mas antes existia algo especial entre mestre e aluno. O mestre é como se fosse um segundo pai. E até hoje passo isso nas minhas aulas. Deu tanto certo pra mim, porque tive muitos alunos que largaram as artes marciais por tentar aquela coisa nova, sem tanta disciplina, e eu mantive e mantenho até hoje esse caminho.”

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Há, ainda, a inclusão social, prioridade profissional do mestre juiz-forano. Inclusive, para os quase 200 alunos na matriz da Chakuriki Brasil, em Juiz de Fora, sem contar as filiais, é obrigatório o bom comportamento em casa, na escola e demais ambientes. “É comprovado que as artes marciais ajudam a tirar jovens do mundo das drogas, deixam eles mais calmos. E temos, há anos, acordos com pais e mães de que se o aluno tiver com nota ruim ou algum caso de indisciplina na escola, não pode participar. O nosso caminho principal é o respeito, pensando sempre em coisas boas. Quando você pensa em coisas erradas, começa a deixar seu corpo fraco. E nossa ideia é manter mente e corpo fortes durante as 24 horas.”

O conhecimento repassado ainda se mostra determinante em situações delicadas que a vida pode proporcionar. Um exemplo é do aluno conhecido como Douglas “The Power” na área. O lutador é um dos componentes da família que perdeu sua casa no desabamento no Bairro Democrata, no final de 2020. À Tribuna, Douglas afirmou que seu conhecimento das artes marciais o salvou.

Mestre juiz-forano defende a manutenção do respeito e do elo especial entre mestre e alunos (Foto: Fernando Priamo)

Pandemia e novo livro

Há mais de um ano, Carlos ainda teve que se readequar às possibilidades diante da pandemia do coronavírus. Ele conta que houve reflexos diretos no trabalho desenvolvido, mas ressalta a manutenção dos alunos como um fator que o alegrou profundamente em meio ao pesadelo vivido pela sociedade. “Transformou muito nosso trabalho. Fazemos muitas lives, aulas on-line, os alunos treinam mais em casa. Mas o grupo sempre se reúne virtualmente. E quando o treino não é on-line, é na casa do aluno. Mudou muito, mas agradeço demais a Deus pela união desse grupo porque continuou todo mundo. Tenho amigos que fecharam as portas em outros estados, o aluguel é caro, não temos sede própria. Mas nosso grupo é muito forte. E os atletas subiram peso. Ficar em casa não é a mesma coisa que treinar na sede, acontece. E tinha muito evento marcado até pra abril, maio, mas foram cancelados novamente. Mas queremos seguir, independente das dificuldades.”

Diante do maior tempo em casa, Carlos tem dado atenção, ainda, à produção de seu segundo livro na área. A primeira obra, intitulada como Luta de Contato Chakuriki – Muay Thai & Boxing, nasceu em 2012, mesmo ano, inclusive, em que o mestre recebeu moção de aplausos na Câmara pelos serviços prestados ao município. Agora, sem data confirmada, ele promete contar um pouco mais da história do estilo chakuriki.

“Meu primeiro livro foi muito voltado ao muay thai. Não estamos largando esta arte, mas é que existe uma regra nova que nos distanciou um pouco. Esse segundo livro, que estou escrevendo há um tempo, vai contar o que é o estilo chakuriki. As técnicas, o histórico, o que a Holanda fez e continua fazendo para o mundo com referências no esporte. Hoje temos a academia também na Croácia, Espanha, Rússia, Alemanha e vai abrir na Bélgica e na Grécia. O estilo está crescendo e eu meio que puxei isso.”

‘O que mais quero como treinador é deixar exemplo pra minha filha’

Carlos com sua filha de 5 anos, Aisha Silva Mussi: “todos meus esforços são pensando em dar bom exemplo pra ela” (Foto: Arquivo pessoal)

Mais que as técnicas das artes marciais, o mestre Carlos Silva tem como principal objetivo deixar legados, uma forma de retribuição por tudo o que a luta o proporcionou durante quase toda a sua vida. “É um trabalho que eu amo fazer, chego para dar aula e vem aquele monte de aluno, de várias idades, cada um contando uma coisa. Geralmente os mais velhos chegam com problemas de casa, aí pego a chakuriki e mostro a eles um outro caminho. Tentamos pensar positivamente. E as artes marciais me trouxeram saúde, equilíbrio entre o corpo e a mente, o modo que sou, tranquilo, calmo, positivo e pronto pra ajudar o próximo sempre. Muitos dos grandes nomes das artes marciais de Juiz de Fora saíram da minha academia, como Bruno Carvalho, Felipe Silva, Fabiano Oliveira… é muita gente. Devo às artes marciais pelas coisas boas da minha vida e aos meus mestres. Mudaram minha vida. Luiz Silveira Brum, Adriano Silva, Emerson Martins e o Thom Harinck.”

E da mesma forma que lhe foi ensinado, ele carrega um sonho, vivido dia a dia. “O ponto principal, e que preciso dizer, é que o que mais quero é deixar exemplo pra minha filha. Tenho uma filhinha de 5 anos, a Aisha, que adora treinar comigo. Quero que ela veja que o pai ensinou a ela as artes marciais e mudou a vida de muita gente para o bem. Porque tivemos muitos atletas aqui que chegaram caídos pelo uso de drogas, brigas de rua, que foram presos por causa de tráfico. Mas conseguimos salvar muita gente. Perdemos alguns, claro, isso é normal, mas conseguimos ajudar muitas pessoas e isso não tem preço. É o que vale. Porque são muitos jovens perdidos. E quando chegam, entendem as regras, a disciplina e a chance de ter seus nomes gritados, conhecidos. Isso marca.”

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