Para tentar entender o sentimento de parte da torcida brasileira, a Tribuna convidou três pessoas para uma breve viagem no tempo, de forma a revisitar sensações descritas após o massacre alemão do Mineirão do dia do dia 8 de julho de 2014. O publicitário Ivan Cunha, o professor e músico Luiz Gustavo Mandarano e a também professora e advogada Adriana Lunardi comentaram publicações feitas por eles nas redes sociais após os retumbantes 7 a 1.
A passagem de ida levou Ivan a uma análise bastante concisa dos diversos fatores que levaram o Brasil a ser humilhado diante de seus torcedores há quatro anos. Em tom bastante racional, o publicitário considerou, em julho de 2014, que o 7 a 1 poderia ter sido ainda pior: “podia ter sido 10”. “A seleção levou um baile. Não. A seleção levou um chocolate. Não, não. A seleção levou uma lavada, um banho, foi humilhada! Foi uma aula de futebol! Não, também não”, desabafou o publicitário em sua conta do Facebook um dia após o massacre alemão.
Confrontado com seu “eu do passado”, o Ivan atual mantém o tom racional na avaliação daquela que é considerada a maior das derrotas da Seleção Brasileira de futebol. Antes, porém, admitiu surpreso: “nem lembrava que tinha postado isto”. “Tudo o que disse refletia um sentimento que tinha antes do 7 a 1. Eu já tinha a sensação de que o time era desorganizado, limitado e que o Felipão não era a figura certa para estar ali. Lembro que no dia do 7 a 1 não fiquei triste ou chateado. Na verdade, fiquei com um sentimento de bem feito e de que tivemos o que merecíamos”, rememora.
Se para o publicitário a goleada não significou uma grande decepção pela consciência da discrepância entre o futebol jogado pelas seleções de Brasil e Alemanha, ela ainda pode ser benéfica para a recuperação do futebol brasileiro. “Foi algo necessário talvez para que atingíssemos o futebol que hoje a Seleção mostra em campo e para o amadurecimento até de muitos daqueles jogadores que disputaram aquela Copa.” Ivan admite perceber certo desinteresse das pessoas com relação à participação brasileira na Capa da Rússia. Para ele, no entanto, tal afastamento vai muito além da derrota para a Alemanha.
Otimismo à flor da pele
A professora Adriana Lunardi se mostra uma torcedora mais passional. Há quatro anos, também recorreu ao Facebook para lamentar o desânimo observado momentos antes da disputa do terceiro lugar da Copa de 2014, quando o Brasil foi derrotado pela Holanda, após ser alijado da final no elástico revés contra a Alemanha. “Acordei cedo e não ouvi algazarra, andei pelas ruas e não vi as cores da bandeira nas roupas nem a própria bandeira eu vi”, comentou, já sentindo falta do clima festivo que tomou conta do país nas semanas que antecederam a partida disputada no dia 12 de julho de 2014.
“Gosto de festa. Então, quanto mais o Brasil ganhar, mais festa vai ter. Percebi (após o 7 a 1) que houve uma questão da identidade do brasileiro ficar abalada. A identidade do brasileiro é muito ligada ao futebol. Tanto que a maioria das pessoas só usa as cores do país quando tem jogo, apesar de depois alguns terem usado para protestos políticos. O Brasil vencer no futebol é sempre bom, pois reforça esta identidade e este sentimento de nacionalismo. A gente precisa reforçar esta visão. Sei que está bem abalado, mas eu vou continuar apoiando a Seleção Brasileira”, afirma, contando as horas para o apito inicial do duelo entre Brasil e Suíça, às 15h.
Para o fã de futebol, nada mudou
“Muita gente está me chamando de pé frio porque vi ao vivo o chocolate com chucrute aplicado pela Alemanha no Mineirão”, postou o professor e músico Luiz Gustavo Mandarano no Facebook em 9 de julho de 2014, um dia após o massacre alemão em Belo Horizonte. Quatro anos depois, ele segue refutando o rótulo de pé-frio, considerando-se a pessoa “mais incrédula do universo”. No entanto, Mandarano considera ter vivenciado a história sendo escrita. “O 7 a 1 já carrega uma coisa em si que não precisamos falar mais nada: é o 7 a 1 e acabou”, sentencia.
“Para mim é a maior vergonha é e o resultado mais desastroso da história do esporte, pois é uma grande seleção, que sempre entra como favorita, jogando dentro do seu país, em uma semifinal do torneio mais importante daquele esporte, e que toma de sete. Para mim é irreversível. Como reverter isto? Só se fosse uma Copa na Alemanha, em uma semifinal em que o Brasil vencesse os donos da casa por 8 a 0. Só assim para reverter, mas isto nunca vai acontecer. Ainda assim, não apagaria. Pensei antes do jogo: semifinal de Copa do Mundo… Brasil e Alemanha. Isto é história. Vou assistir à história sendo escrita. Só não precisava ser tanto”, relembra o músico. “Saí do jogo falando que ia dar entrevista por conta deste jogo.”
O professor confessa que a goleada alemã pouco alterou sua relação com a Copa do Mundo. “Para mim, não mudou nada. Eu, fã de futebol, assisto jogo porque gosto de futebol.” Contudo, Mandarano entende que o revés pode ter contribuído para um maior afastamento e desinteresse de alguns torcedores para com a Seleção Brasileira e a Copa. “Mudou para muita gente. Além do 7 a 1, toda a questão política e econômica do pós-Copa fez com que as pessoas tivessem uma certa raiva”, avalia.
Aqui jaz a ‘pátria de chuteiras’?
Independentemente de os torcedores ainda nutrirem certa expectativas pela entrada em campo da Seleção Brasileira e pela Copa do Mundo em si, estudiosos da relação entre a identidade do brasileiro e o selecionado nacional, do ponto de vista antropológico, histórico e midiático, considera que os 7 a 1 sofridos contra a Alemanha há quatro anos pode ter sido uma pá de cal para a camisa verde e amarela como um dos principais símbolos de identificação de nossa sociedade. “A ‘pátria de chuteiras’ morreu, mas o ‘país do futebol’ ainda está vivo”, afirma, taxativo, o antropólogo do Centro de Estudo e Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP-FDC), Édison Gastaldo.
Para ele, a ideia de que a Seleção Brasileira é um dos símbolos da nação, como a bandeira e o hino, faz parte de um processo construído ao longo da história, mas já divorciado do brasileiro contemporâneo. “Foi um processo que teve um apogeu, que eu diria que foi 1950, na primeira Copa no país quando o Brasil perdeu. Nunca ninguém foi tão brasileiro por causa da Seleção. Perdeu mais se afetou. Perdeu mas sofreu e fez do sofrimento da Seleção um sofrimento pessoal”, avalia, lembrando que, em termos culturais, o futebol no Brasil é sistema de adesão voluntária. “A Seleção durante muitos anos foi a quintessência do futebol brasileiro. Só os melhores jogavam. Os jogadores da Seleção eram jogadores do futebol brasileiro. Era o time de todo mundo. Hoje, já não é mais assim, e o 7 a 1 foi a pá de cal em qualquer processo de identificação. É um processo irrecuperável. Vamos ter que redescobrir quem somos e novos símbolos que nos representam, pois esta camisa amarela acabou”, destaca.
Para reforçar o entendimento de que, ao contrário da pátria de chuteiras, o país do futebol “vai bem, obrigado”, Gastaldo reforça os sentimentos que os brasileiros ainda nutrem pelo esporte no âmbito clubístico e detalha o que, em seu entendimento, resultou em um rompimento definitivo dos brasileiros com a Seleção como elemento de identificação nacional. “Cada vez mais a Copa do Mundo é uma brincadeira e menos uma coisa séria. As pessoas esperam apenas pela festa. A coisa séria é o Campeonato Brasileiro. É ali que acontece a adesão a um sistema complexo de pertencimento chamado futebol, que, hoje, ocorre apenas nos times locais que têm relações históricas de localidade e de rivalidade. A gente não se identifica mais com os jogadores da Seleção, que largaram nossos times do coração para ir jogar na Europa. A devolução quase religiosa que a gente tinha com aquele time da camisa verde e amarela está morta e enterrada.”
Relação estremecida
Jornalista e professor da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), Chico Brinati é autor do livro “Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014”, em que analisa a forma como os principais veículos impresso de comunicação do país abordaram a cobertura e o período que sucedeu as duas Copas do Mundo disputadas no Brasil, consideradas duas das principais derrotas da história de quase 104 anos da Seleção Brasileira de futebol. Para o docente, nos dias atuais, a relação do brasileiro com a equipe mudou, e a camisa verde e amarela deixou de ser um dos principais emblemas de toda uma nação, um instrumento unificador de país e peça importante da formação da identidade brasileira.
“Ao longo dos anos, a relação do torcedor com a equipe muda. Em 1950, por exemplo, a derrota é tratada como um momento de tristeza porque o Mundial era visto como um projeto de nação e de um reposicionamento do país no cenário internacional no pós-guerra. Era visto como o momento de mostrar que o Brasil estava entre os maiores países de todo o mundo. Por isto mesmo a construção do maior estádio do mundo à época: o Maracanã. Porém, mesmo com a derrota para o Uruguai, apesar de termos pelos jornais esta ideia de tristeza e desapontamento, também era evidente uma expectativa por dias melhores do futebol brasileiro. Já em 2014, a derrota é tratada como uma vergonha e um vexame, sendo levada para o campo do risível e do deboche. Tais sentimentos ajudam a afastar o torcedor”, avalia Brinati.
Para ele, a principal mudança nesta relação se dá pelo fato de que, no hiato de 64 anos entre um revés e outro, o brasileiro passou a entender melhor que uma vitória ou uma derrota da Seleção Brasileira de futebol não é uma vitória ou uma derrota de um projeto de nação, mas, sim, de uma equipe de futebol no campo esportivo. “Entre estes dois momentos (1950 e 2014), passa a existir esta diferenciação, o que diminui, digamos assim, esta leitura de ‘seleção-nação’ tratada como um emblema de todos de todo um país. Esta mudança não se dá apenas a partir do 7 a 1. São diversos fatores que vão contribuir para esta nossa nova relação. Entre os mais relevantes, podemos citar um fenômeno que vem dos anos 90, que muda a identificação com a Seleção, quando passamos a ter a maioria dos nossos principais jogadores atuando no exterior. Não há mais uma relação com os clubes e o torcedor brasileiro é muito apegado nesta relação de identificação clubística. Talvez, o exemplo maior disto seja a seleção de 1982. Esta geração marcou muito porque tinha jogadores muito vinculados aos clubes brasileiros à época.”
O professor ainda cita outros fatores que podem ter contribuído para esta nova relação entre o brasileiro e a Seleção, agora mais distante. Entre eles, cita a globalização, “que abre portas, quebra barreiras e acaba amenizando as relações dos indivíduos com apenas uma nação”; os constantes escândalos de corrupção envolvendo dirigentes da CBF; a elitização dos estádios e a apropriação feita por uma parcela da camisa da Seleção para razões políticas. “Isto afasta pessoas que pensam diferente. Desânimo do brasileiro com o país como um todo, crise política e econômica”, pontua Brinati.
A dor da gente também sai do jornal
Contrariando o lirismo do compositor Chico Buarque, que, em sua música “Notícia do jornal”, decreta que “a dor da gente não sai no jornal”, a Tribuna revisitou suas próprias feridas e pediu à repórter Daniela Arbex e ao editor-adjunto Guilherme Arêas, que estiveram no Mineirão no dia 8 de julho de 2014 e assistiram com seus próprios olhos o 7 a 1 para compartilhar suas reminiscências. O resultado você lê nos textos abaixo, que, de certa forma, também emocionaram o autor desta reportagem. Assim como os colegas, aproveito para deixar de lado o tom de distanciamento necessário para dar ao texto até aqui os vieses de imparcialidade tão necessários no jornalismo diário. Passo a falar, então, em primeira pessoa para também desabafar sobre minhas dores esportivas no jornal e confessar, uma vez mais, que, após ter assistido no estádio a seis partidas da Copa de 2014 – três da Seleção, contra Croácia, México e Colômbia – só recentemente consegui superar o 7 a 1 e admitir publicamente que as quatro semanas da chamada Copa das Copas estão entre as minhas melhores memórias esportivas.
Enfim, para mim, que não me considero nenhum torcedor fanático do time brasileiro – sou mais corintiano, confesso – existe, sim, vida após a goleada alemã e já sinto até um frio na barriga à espera da estreia do time canarinho nesse Mundial.
‘Dá tempo para sonhar de novo’
Daniela Arbex, repórter especial
Ser testemunha da histórica derrota do Brasil para a Alemanha na Copa de 2014 é um “fardo” difícil de carregar. Como a gente sempre faz piada da própria desgraça, fiquei conhecida como o “pé frio” da redação. Tive que aguentar por meses a fio a gozação dos colegas da Tribuna por presenciar aquele massacre cara a cara. Fiquei colada no campo e vi a rede adversária balançar tantas vezes que cheguei a perder a conta. Tinha hora que mirava o telão do Mineirão para tentar entender o que estava acontecendo. Será que era replay? Não. Perdíamos e feio. Muito feio. Para piorar, nuvens carregadas cobriram o estádio. Literalmente, o tempo fechou por lá. Mas o bom da vida é que a passagem dos anos nos dá tempo suficiente para sonhar de novo. Jamais esquecerei aquela terça-feira. No entanto, 48 meses depois, torço por um desfecho diferente. Não como pão e circo ao povo de uma nação despedaçada. Mas para que o futebol nos lembre de resgatar a unidade que perdemos muito antes do fatídico 7 a 1.
‘Torço, de verdade, pelo hexa’
Guilherme Arêas, editor de internet
Alguma coisa me falava “Comemora antes, Guilherme. Comemora antes”. E assim eu fiz. Algumas horas antes do jogo, me aproximei da batucada que vinha de um bar no entorno do estádio e pulei, vibrei e cantei até a goela doer. Era o momento de comemorar meu primeiro jogo da seleção, primeira vez em uma Copa do Mundo, primeira vez no Mineirão. Comemoração antecipada, porque, sei lá, vai que o Brasil perde. A Alemanha é boa. Pelo menos já comemorei, pensei.
Ainda bem. O que se passou dentro do gramado daquele 8 de julho de 2014 todo mundo já sabe. Mas estar lá, na arquibancada, foi uma das experiências mais esquisitas que já vivi. A certa altura do primeiro tempo, quase que em estado letárgico, acabei me perdendo no jogo. Uma amiga que me acompanhava tinha ido ao banheiro e, ao retornar, me perguntou sobre o placar. Eu já não sabia se estava 3 a 0 ou 4 a 0, momento em que a Alemanha fez mais um gol. E aí eu já não sabia se era 4 a 0 ou 5 a 0.
No segundo tempo, a decepção se transformou em pânico. Irritados, torcedores brasileiros brigavam entre si. Briga mesmo, física! Qualquer manifestação, a favor ou contra a seleção, virava motivo para briga. Assustados, deixamos o Mineirão antes mesmo do apito final. Foi o tempo de virar o pescoço e ver o último gol da Alemanha: 7 a 0. O gol de honra de Oscar a gente só viu pela televisão, já do lado de fora do estádio. Voltamos para Juiz de Fora no primeiro ônibus disponível. Um silêncio igualmente esquisito.
De lá para cá, não fui mais a estádios. Primeiro pelo meu crescente desinteresse pelo futebol. Segundo porque sempre fica aquela sensação de que o pé frio era o meu (desculpa, Brasil). Não acompanho a Seleção e, como a maioria dos brasileiros hoje, acho que sei mais sobre os 11 ministros do STF e suas posições ideológicas do que a formação dos 11 da equipe brasileira e suas posições em campo. Mas pretendo assistir aos jogos da Copa. Torço, de verdade, pelo hexa. Seria um respiro bem-vindo nesse 2018 conturbado para nós, brasileiros.