Detalhe do mural “Apocalipse”, de Emeric Marcier, executado em 1953 na Capela do Cenáculo (Roberto Fulgêncio)
PUBLICIDADE
“Toda a minha infância fora marcada pelo pressentimento do que iria acontecer mais tarde”, revela, a certa altura de sua autobiografia “Deportado para a vida”, o artista romeno Emeric Marcier. Em 1944, na revista “Síntese”, quando Marcier já não era um empobrecido professor particular de matemática na fronteira com a Hungria, mas um respeitado pintor europeu, um amigo lhe ofertou um veredicto: “É de homens assim que o mundo necessita cada vez mais. Diante de tanto ímpeto, tanta força criadora, e ao mesmo tempo de trabalho ordenador, creio que o futuro não me poderá desmentir: o destino de Marcier será grande.”
PUBLICIDADE
Barbacena, 1950: Murilo Mendes visita sítio de Emeric (de barba) (REPRODUÇÃO Fernando Priamo)
E foi. Murilo Mendes, o amigo autor de tal generosidade, viu o tempo confirmar as palavras. E Marcier, que por muitos anos teve em Murilo seu grande ombro, viu a terra onde o poeta avistou o Cometa Halley. Na Juiz de Fora do amigo, pintou, a pedido do arquiteto Arthur Arcuri, o apocalipse na Capela do Cenáculo São João Evangelista, mural tombado, em 2003, pelo município.
PUBLICIDADE
Também criou, em 1954, um ano depois da pintura no lugar sagrado, um afresco na sala de estar do Sítio Tucumã, da família Ribeiro de Oliveira. Durante a execução do trabalho residencial, não gostava de ser observado. Característica de um homem que se relacionava muito intimamente com seu ofício. Nas lembranças do filho Matias Marcier, respeitado arquiteto carioca, “em seu ateliê ninguém podia perturbá-lo. Às vezes ele virava a noite trabalhando.”
“A vida dele foi toda voltada para a arte. Foi a coisa mais importante para ele. Viveu disso a vida inteira”, comenta Matias sobre o pai que se despediu em 1990, aos 74 anos. Como frutos de tamanha dedicação, Marcier colheu a presença nos principais museus do Brasil – como o Nacional de Belas Artes e os de Arte Moderna do Rio e de São Paulo – além da posteridade expressa em painéis de casarões país afora, a maioria deles com temática religiosa.
PUBLICIDADE
No ano de seu centenário, Emeric Marcier é resgatado na coletiva “Vida e paixão”, em cartaz na Galeria Renato de Almeida, do Centro Cultural Pró-Música, até o dia 17 de agosto, integrando o Festival de Música Antiga. Segundo o filho Matias, o Governo de Minas também planeja uma comemoração ao artista que, mesmo tendo vivido em Lisboa, depois na capital fluminense e falecido em Paris, quando perguntado onde morava, dizia sempre: “Barbacena!”.
Cruzeiro em Minas
Detalhe de autorretrato do artista, pintado na década de 1970, pertencente à coleção de José Wilker e leiloado em 2015 (Divulgação)
“Meu pai nasceu na Romênia, foi para Milão estudar, fez academia de artes e, de lá, foi para Paris. Na França, era surrealista e saiu por causa da guerra. Mudou-se, então, para Portugal, esperando uma oportunidade de ir para os Estados Unidos. Quando conheceu gente brasileira, veio para cá, em 1940. Trazia três cartas de recomendação, uma para o José Lins do Rego, outra para o Mário de Andrade e uma última para o Cândido Portinari”, conta Matias.
Amigo de escritores, muito mais que artistas plásticos, Marcier foi, pouco a pouco, introduzindo-se fortemente no circuito intelectual brasileiro da segunda metade do século XX. Ora estava com Jorge de Lima, ora com Oscar Niemeyer, que lhe encomendou alguns murais, ora com Lúcio Cardoso. “É uma obra muito densa, muito importante. Meu pai viveu com uma gama de pessoas interessantes. Houve um momento em que toda casa intelectual tinha um quadro dele”, pontua Matias, arquiteto por influência paterna.
Em 1942, foi enviado pela revista “O Cruzeiro” para retratar, em imagens, a Minas Gerais da época. Encantou-se pelo barroco. Anos mais tarde, um amigo comprou um sítio em Barbacena, e Marcier começou a visitar, até ter seu próprio canto entre as montanhas. Tombado pelo estado e preservada por Barbacena, seu Sítio Sant’Anna transformou-se em Parque Museu Casa de Marcier, onde convivem um bucólico jardim, alguns quadros e um grande painel retratando o Casamento de Nossa Senhora e São José.
“Achava um absurdo Barbacena perder aquele espaço. Conversei com a primeira secretária de cultura da cidade e sugeri que tombassem e mantivessem”, lembra Matias. “Antes estivesse em nossas mãos, porque talvez estivesse melhor. Cultura é como uma vela, bate um vento e é preciso ir lá e acender. De qualquer forma, é incrível que a casa esteja preservada.”
Atualizando o pintor do Novo Testamento
“ICHTHUS”, instalação fotográfica de Nina Mello
Se o exercício do resgate faz-se imprescindível para retirar das sombras trabalhos que, de alguma maneira, ainda valem ressoar, mais relevante se torna o esforço da atualização. O que eu faço com o que já foi feito? Daí surge o sentido. “Vida e paixão”, a coletiva que reúne artistas de diferentes estilos, todos em atividade em Juiz de Fora, fala de Emeric Marcier, mas também de um presente artístico.
“ICHTHUS”, acróstico da frase grega “Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador”, assinado por Nina Mello, mergulha na “Santa ceia” de Marcier e pesca o peixe sobre a mesa, retirando dele o discurso religioso tão recorrente na obra do romeno. Num jogo de sobreposições, insere ao fundo uma cena de mulheres a pescar e, num primeiro plano, impresso em tecido transparente, a imagem de peixes grandes.
“Pedra II”, óleo s/ PVC de Eduardo Borges
Ali, a fotógrafa diz do símbolo que unia a marginalidade católica. Nos primórdios da religião, bastava desenhar um peixe e os católicos se identificavam. Referindo-se à identidade de gênero como condição que também leva às bordas, Nina Mello traça o contemporâneo sobre a obra de um artista que também se viu à margem quando abraçou o catolicismo em detrimento do judaísmo. Seus peixes são alimento, mas também desconcerto.
Evocando o peso da temporalidade, Eduardo Borges insere uma pedra num rosto de mulher pintado aos moldes do retrato retocado, tudo num óleo sobre tela de total domínio técnico. “A força evocativa da pedra me solicita, ouço o rumor de transmissões cavadas por ela”, diz o artista, ecoando o tema familiar frequentado por Marcier e também revisado por Valéria Faria ao expor, agrupando pequenos objetos pessoais sobre 14 telhas de sua casa, nas quais um coração pode ser visto moldado no barro. Retoma, assim, o barroco pelo qual o romeno se encantou.
Detalhe de “Meu muro”, lambe-lambe de Priscilla de Paula”
Priscilla de Paula, com um grafismo de azul impresso em papel e colado na parede como lambe-lambe, mostra “Meu muro”. Seu muro hoje, diante dos murais do Marcier de ontem, que pelos olhares de Cássio Tassi, Fabrício Carvalho, Francisco Brandão, Letícia Bertagna, Paulo Alvarez, Pinho Neves, Raízza Prudêncio, Ricardo Cristofaro, Sandra Sato e Thiago Berzoini também é relocalizado no agora.
“Releitura, muitas vezes exige que a própria obra do artista seja, respeitosamente, desconstruída”, aponta Nina Mello. Emeric Marcier, certamente, não discordaria. Desejava que sua obra se mantivesse plena. “Só me restava a pintura, verdadeira razão que me fizera vir até aqui, de tão longe”, escreveu ele, em sua autobiografia. “Sempre lutando com os ventos, fincaria meu cavalete para poder trabalhar e dar vazão ao meu amor.”
VIDA E PAIXÃO
Tributo ao centenário de nascimento de Emeric Marcier
De segunda a sexta-feira, das 9h às 18h, até 17 de agosto
Pró-Música
(Av. Rio Branco 2.329 – Centro)
“Por Cristo, com Cristo, em Cristo”, instalação de Valéria Faria (REPRODUÇÕES FERNANDO PRIAMO)