Talvez seja a sombra mais famosa que cerca o cinema de horror, mas com certeza é o vampiro que se tornou imortal. Há cem anos, em março de 1922, o diretor alemão F.W. Murnau lançava o filme “Nosferatu”, uma adaptação do romance “Drácula” (1897), de Bram Stoker. O clássico do expressionismo alemão resistiu ao tempo e influenciou obras de sucesso na cultura pop, como a saga “Crepúsculo” (2008-2012) e o filme “A bruxa” (2015). Porém, o simples fato de ser uma adaptação de “Drácula” coloca a obra em meio a polêmicas.
O vampiro Orlok deseja comprar uma nova propriedade, e o jovem Thomas Hutter vai a seu encontro nos Montes Cárpatos para vendê-la, enquanto sua esposa Ellen o espera retornar à Alemanha. No momento em que Orlok vê uma fotografia de Ellen, o vampiro se encanta por seu pescoço e viaja até ela, derramando muito sangue pelo caminho e instaurando o terror. O enredo similar ao de “Drácula” se diferencia por pequenas modificações, como os nomes dos personagens e a descrição mais assustadora do vampiro. No entanto, as mudanças não foram feitas por preferência da direção, mas sim por questões de direitos autorais da obra de Stoker.
Um conflito entre os herdeiros de Stoker e os produtores de “Nosferatu” quase impediu que a obra fosse assistida nos dias de hoje. Após a esposa de Stoker negar os direitos autorais de “Drácula” e levar o caso para a Justiça, o tribunal de Berlim decidiu que todas as cópias do filme deveriam ser destruídas. Embora a ordem tenha sido acatada na Alemanha, as cópias de “Nosferatu” já haviam chegado aos Estados Unidos, quando lá “Drácula” era de domínio público. Segundo o autor de romances de horror Anderson Pires da Silva, o conflito entre propriedade intelectual e originalidade artística no campo da literatura e do cinema de horror é muito obscuro.
Pires da Silva também é professor de literatura da Faculdade de Letras da UFJF e explica que a figura do vampiro surgiu nos contos folclóricos dos povos do Leste Europeu, nos séculos 17 e 18, como produto do imaginário coletivo e das narrativas orais. Ainda não havia se tornado uma figura literária e midiática. Portanto, não tinha um proprietário. “Antes de Bram Stoker, o vampiro já era um personagem literário, basta citarmos o conto “O vampiro” (1819) de John Polidori e “The feast of blood” (1840) de James Malcolm Rymer, e a primeira obra-prima da “literatura vampiresca” “Carmilla: a vampira de Karnstein” (1872), do escritor irlandês Sheridan Le Fanu.” Anderson relembra que a obra de Le Fanu teve uma grande influência sobre Drácula, considerado por alguns estudiosos como bem próximo do plágio.
“Porém Stoker substituiu o erotismo lésbico, dominante em ‘Carmilla’, por uma trama centrada em um tema recorrente dos romances góticos ingleses do século 19: o amor maldito. ‘Drácula’ é uma história romântica envolta em desejos sexuais reprimidos e o sobrenatural. Foi o que Francis Ford Coppola percebeu na sua excelente adaptação do romance (1992). Aí está a genialidade de Bram Stoker, porque o seu romance se tornou o paradigma para tudo o que foi feito depois dele, é a base da mitologia vampiresca”, afirma o escritor.
Figura distorcida e assustadora
Uma silhueta comprida, mãos e nariz longos, olhos arregalados, um grande casaco preto e uma sombra sobrenatural fazem de Orlok uma figura assustadora, mas ao mesmo tempo interessante, atraindo a curiosidade do público. O personagem interpretado por Max Schreck causava medo até na equipe dos bastidores, alguns acreditavam que realmente fosse uma vampiro. “A aparência grotesca do vampiro, com certeza, é um dos principais motivos para permanência de Nosferatu em nosso imaginário”, analisa Anderson.
Essa representação do vampiro em “Nosferatu” se distancia da descrição do Conde Drácula feito por Stoker, no qual o vampiro era retratado como um aristocrata elegante, refinado e até sensual. “O vampiro é um ser transmorfo, ao mesmo tempo um aristocrata, um ser civilizado, e um ser primitivo, selvagem. Ao contrário de outras criaturas sobrenaturais (lobisomem, zumbi, etc), o vampiro vive normalmente na sociedade, como uma pessoa ‘normal’ e isso permite abordagens muito variadas.”
A primeira vez que Anderson assistiu a “Nosferatu”, aos 15 anos, não foi com a versão original, mas sim o remake dirigido por Werner Herzog em 1979. “Eu fiquei muito impactado com a versão do Herzog, justamente por conta da atmosfera e da tensão psicológica.” Desde então, o escritor traz esses elementos na sua literatura. “Toda essa literatura gótica do século XIX moldou muito a minha imaginação. É muito evidente no meu primeiro romance – ‘Malditos: uma ficção gótica existencialista’ -, há na trama um culto em torno do ‘beber sangue humano’ como uma espécie de afrodisíaco proibido, algo que libera um poder sexual como meio de dominação e poder.” No seu segundo romance, “O Mal que os habita”, Anderson constrói a história em torno do terror atmosférico, muito presente nos filmes de Murnau, em que o destaque é a ambientação do cenário e a deterioração psicológica dos personagens do que o susto em si.
Para o cineasta Rodrigo Aragão, diretor de filmes como “Mangeu negro” e “O cemitério das almas perdidas”, “Nosferatu” é o primeiro vampiro a “mostrar a cara no cinema e seu visual animalesco com traços de ratos e morcegos é até hoje uma das melhores caracterizações já feitas”. Por isso, vê no longa uma inspiração para as suas produções. Segundo o diretor, as referências à obra de Murnau ficam evidentes no seu segundo longa-metragem, “A noite do Chupacabras” (2011). “A criatura do título tem dentes muito parecidos com os de Nosferatu, que, para mim parecem bem mais assustadores que os tradicionais caninos pontiagudos.”
Para durar mais cem anos
O filme mudo, em preto e branco, com uma estética marcada por jogo de luz e sombra, ângulos profundos, cenários distorcidos e sombrios – características do expressionismo alemão -, foi construído com os poucos recursos da década de 1920 para inserir o telespectador na atmosfera do filme. Tais elementos mais tarde viriam a ser usados como referência no cinema de horror. “Uma das coisas mais marcante desse filme é o uso das sombras feitas pelo mestre do expressionismo alemão F. W. Murnau. Sabendo que o ser humano sempre teve e sempre terá medo do escuro, ‘Nosferatu’ se tornou um filme imortal e assustador até hoje”, aponta Rodrigo Aragão.
Após Orlok aparecer em um episódio de Bob Esponja, no videogame “Red Dead Redemption 2” e ter influenciado várias produções voltadas para a cultura vampiresca, o clássico pode ganhar uma nova versão. Há rumores de que o cineasta Robert Eggers, diretor dos filmes “A bruxa” e “O farol”, seria o responsável pelo remake. Recentemente, Eggers declarou à imprensa que o cantor Harry Styles quase ganhou um papel no filme, que será protagonizado por Anya-Taylor-Joy, mas desistiu do personagem no último minuto.