A internet e as redes sociais nos permitem “mostrar” as mais diferentes personalidades ou “interpretar” personagens – alter egos variados de acordo com nossas necessidades ou vaidades. Em uma rede social podemos ser, por exemplo, a figura engraçada a compartilhar memes; em outra, o engajado político; numa terceira, o fitness. É essa dicotomia entre o real e o imaginário (ou inventado, fingido) que o Núcleo de Formação de Atores da Sala de Giz apresenta de quinta-feira (31) a domingo (3), às 20h, no espaço Sala de Giz, com o espetáculo “Peles para vestir pequenos deuses”, segunda produção feita com atores que participam do núcleo; a primeira foi “Tempo de afogar 2 cavalos”.
Essa discussão se dá durante o se apresenta como uma festa à fantasia, em que nove pessoas passam a criar a mitologia particular de um jovem, sendo que este desenvolvimento revela não somente a respeito do personagem idealizado por eles, mas também os valores e sentimentos de cada indivíduo e do grupo em geral. Questões como sexualidade, opressão e identidade permeiam a história, em que o público é provocado a desvendar o que é (ou não) real no que é entregue pelo elenco.
Processo criativo de dois anos
A peça tem direção de Felipe Moratori e Bruno Quiossa, com dramaturgia desenvolvida por Felipe a partir de um processo peculiar de criação coletiva. Como a dupla explica, o atual Núcleo de Formação de Atores teve seu ciclo iniciado em 2017; no primeiro ano foram trabalhados os parâmetros básicos e apresentada uma mostra com cenas solo criadas pelos alunos; para o segundo e derradeiro ano, estas cenas foram “costuradas” por Felipe para o espetáculo.
Felipe Moratori explica que o mote do espetáculo são as fake news, mas não mera colcha que reunisse os absurdos que costumamos ver por aí. “Durante os ensaios nós trocávamos mensagens por meio do WhatsApp como se eles fossem os personagens, e imaginávamos essas outras pessoas que não eram reais. No teatro trabalhamos com personagens que não existem, e o teatro contemporâneo tem essa discussão muito forte entre a realidade e a ficção”.
“Esse material é todo deles, nós só ajudamos a organizar”, acrescenta. “Era muito legal ver como eles se envolveram na criação dos personagens, que na verdade são eles mesmos (os atores vão usar seus próprios nomes no espetáculo), suas reações no momento da composição. Eles se comportaram como se fosse a realidade, uma composição dramatúrgica muito interessante.”
Com cerca de seis meses de ensaios a partir do primeiro esboço do texto, muita coisa foi acrescentada e consequentemente trocada durante o processo. Com um tema tão subjetivo, Bruno acredita existir espaço para improvisação, mas que isso vai depender da reação do público. “A peça tem seus pilares para manter a dramaturgia em pé, mas com certeza há momentos em que salta aos olhos esse improviso, o que pode resultar em caminhos diferentes. Mas o desfecho é o mesmo.”
Discutindo o real e o imaginário
A ideia de “Peles para vestir pequenos deuses” já existia antes do Brasil entrar na ebulição política de 2018, em que as redes sociais – principalmente o WhatsApp – se mostraram decisivas para o resultado das eleições em seus vários níveis, e Felipe e Bruno concordam que o espetáculo não poderia passar incólume pelo atual contexto, mesmo que não seja uma peça de viés político. “Vivemos um momento político em que a eleição (presidencial) foi ganha com fake news. Vivemos um momento ‘fake’, com um presidente ‘fake’ que venceu graças às fakes news”, acredita Bruno. “Hoje as pessoas criam suas próprias realidades, como essa história da Terra ser plana. O teatro é muito potente para discutir essa questão do que é real ou imaginado.”
“Nós brincamos com essa questão do ‘mito’ – que hoje em dia ganhou um significado diferente -, das mentiras que criaram um novo ‘mito'”, antecipa Quiossa. “O personagem principal da peça é criado durante o espetáculo tanto pelos personagens quanto pelo público, com toda a sua mitologia particular, que pode ganhar características diferentes de uma apresentação para outra, mas a ideia é que seja a mesma figura ao final em todas as encenações.”
“Tem muito a ver com o quanto que queremos tornar ‘real’ o que é fake”, pontua Felipe. “Na peça, os personagens estão falando, na verdade, muito de si próprios quando criam esse ‘mito’. Tanto que incentivamos que eles criassem suas próprias fantasias para a peça, pois é você que fantasia a forma que quer se mostrar para o outro, ou esconder coisas suas. Ao mesmo tempo, ao incentivar neles a experiência de atores-criadores, era uma forma de fazê-los pensar que suas escolhas influiriam no resultado coletivo.”
Segundo a dupla de diretores, a discussão a respeito do que é fake e a questão do mito foi ganhando novas significações com o transcorrer dos ensaios, com o elenco e direção buscando trazer várias sensações diferentes. “São onze pessoas envolvidas, com suas próprias sensações, emoções, num universo plural em que o público pode se enxergar também, seja com um personagem, uma fala”, conclui Bruno Psi.
PELES PARA VESTIR PEQUENOS DEUSES
Quinta-feira (31) a domingo (3), às 20h, no espaço Sala de Giz (Rua Mariano Procópio 65)