“Quem sabe tocar guitarra, toca heavy metal, quem sabe desenhar, faz quadrinho”, declarou Régis, com olhar feliz repousado em seus livros: “O cientista”, “Ele” e o recente “O aerógrafo”, que será lançado nesta sexta, 1º de dezembro, às 15h, no Cult Art.
Régis é calvo, usa óculos, relógio de pulso abotoado por cima do punho da camisa; uma xadrez de flanela azul e verde. Seu celular fica em suporte preso ao braço, com fivela. Carrega um envelope pardo, dentro dele está o desenho original da capa de seu último livro, colorido utilizando como técnica o aerógrafo. Também uma pasta preta de couro, que me fez lembrar meu pai, com um bolo de cartinhas brancas escritas nominalmente uma a uma por ele. Após nossa conversa, partiria para os Correios, mesmo que fosse debaixo da chuva.
“Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro…”, assim abre seu livro, citando uma estrofe do poema “O corvo”, de Edgar Alan Poe, seu livro de cabeceira. “Eu estou sempre relendo. A palavra religião vem do latim “religare” e significa reler. Então a minha religião é essa, os livros que a gente lê e relê.” A obra volta a aparecer na história quando o personagem principal leva o livro do Alan Poe para seu analista, logo depois de o ter entregado, também, uma Bíblia.
Estávamos em uma biblioteca, de mesas amarelas, passei os olhos na estante e perguntei sobre os livros que ele já tivera lido. Nos últimos tempos, Cheker terminou “Vinte mil léguas submarinas”, do Júlio Verne, e também “Admirável mundo novo”, do Aldous Huxley. E faltam apenas algumas páginas para que termine o romance “Drácula”, de Bram Stoker. Sobre sua experiência ao ler, na juventude, “1984”, de George Orwell, ele diz: “depois que se acaba de ler o ‘1984’, é como se a gente acordasse de um pesadelo e ele continuasse em pleno dia”.
“O aerógrafo” parece ser escrito em fluxo de consciência. A narrativa em 48 páginas é tecida sem interrupção, nos levando a improbabilidades e diálogos beirando o nonsense, uma moto falante sob efeito de LSD, uma carona cósmica e uma pizza voadora que o ajuda a percorrer a estratosfera (suponho que o autor se interesse pela série de livros do britânico Douglas Adams). A história te pega através das referências, toques de humor ácido e termina de surpresa, um “fim” metalinguístico, assim como o tema central deste trabalho. O pensamento do personagem principal e sua realidade interior constroem a lógica que amarra o enredo.
Régis anda de bike
Sua adolescência conturbada na escola o conduziu para a arte, principalmente os quadrinhos, desde cedo começou a ler, gosta da Laerte e também do Luiz Gê, estudou no colégio dos padres Jesuítas, e, por isso, os sacerdotes também acabaram tendo lugar em suas histórias. Escuta Beatles e é fã de heavy metal: Judas Priest e Sepultura. Tinha um coelhinho de estimação, que recebeu uma singela homenagem em seu trabalho. E, até hoje, o cartunista adora pedalar, sentir o vento e o ar. Inclusive, em seu livro, “O aerógrafo”, ele explica a brincadeira com o título, que diz sobre uma profissão, e não da técnica de pinturas e gravuras de pulverizar tinta pela pressão do ar comprimido.
“Eles chamam de aerógrafo no Brasil erradamente, porque a palavra significa ‘aquele que escreve acerca do ar e suas propriedades’. Então tive a ideia de fazer esse trocadilho. No convite eu coloquei a frase ‘não é o que você está pensando’, porque não é sobre a canetinha, é sobre um personagem que voa e vai estudando as características do ar, por isso ele é um aerógrafo.”
Na década de 1970, ingressou na faculdade e fez parte do curso de Desenho e Plástica na UFJF, mas desde os 11 anos já começava, ainda de maneira tosca, suas primeiras tentativas para se tornar quadrinista. “Minha adolescência foi bastante infeliz no colégio. E os cartunistas não nascem, eles se forjam em um mar de humilhações e violência.” Após duas décadas desenhando apenas para si, conseguiu publicar seu primeiro livro. “Fui diletante um pouco, confesso, mas agora estou quase profissionalizando”, afirma Régis, espelhando um dos primeiros diálogos do livro: “Como faz o seu trabalho? Faz por diletantismo? É trabalho braçal?”, ao que o personagem desenhado com suas próprias características físicas responde: “Faço trabalho dedal!.”
Multiperverso e Polimorfo
Régis sempre começa o livro pelos personagens, faz uma mistura de nomes e fisionomias com os quais convive. “Meu estilo é multiperverso e polimorfo, como diz Freud. Cada bonequinho tem uma característica maldosa.” Seus vizinhos, mãe, pai, irmãos, seu tio Gilvan Ribeiro que fez o prefácio do livro, uma mulher que foi sua companhia durante 20 anos, seu psicanalista e avô são contemplados de alguma forma nessa etapa de criação. “Primeiro desenho cada personagem individualmente, cada um com sua personalidade física. Como se fosse uma peça de teatro ou novela, você primeiro estrutura os personagens individualmente e depois os coloca para interagir.”
O livro, segundo o autor, é sobre gostar do que se faz e fazer o que se gosta. O personagem principal recebe o nome de Geraldo Procópio, seu avô, mas é desenhado como se fosse o autor, “quando eu ainda tinha costeletas”, complementa. “Um rapazinho muito perseguido, cheio de confusões, mas ele vai trabalhando, trabalhando e, com a ajuda da sua namorada, fica rico, compra um castelo, e os dois vivem felizes para sempre”, resume Régis. Para ele, escrever a história demora quase o dobro do tempo de desenhar. “Não acha que a realidade interior é o todo e a exterior é o pormenor?”, indaguei a ele. Concordando, ele me respondeu: “Isso combina com aquele raciocínio de que desenhar é mais fácil que escrever”. O pormenor seriam os desenhos, a imagem, o interior é o texto.
Há também um desejo de colocar para fora uma frustração que ocorreu desde que os aerógrafos começaram a ser banalizados. “Isso aqui eu considero também como uma vingança. Porque tem criança querendo comprar um aerógrafo, e aquilo não é brinquedo, é uma técnica nobre, custa caríssimo. Fiz uma vingança a essas pessoas querendo transformar o aerógrafo em um brinquedo só porque podem ir à loja e comprar: Vocês querem um aerógrafo? Então está aí na capa do livro, baratinho.”
Striptease
Uma tendência contemporânea dos cartunistas é a de misturar o real e a ficção, por isso os nuances de autobiografia. “Eu considero o quadrinho moderno uma striptease, é o desenhista que tira a roupa em público.” No penúltimo número, por exemplo, ele se expôs contando em quadrinhos sua vivência psicótica em uma Casa de Saúde, cenas descritas e desenhadas no intuito de chocar quem lê, ao desvendar aquela atmosfera. Já “O aerógrafo” é seu trabalho mais leve e alegre, apesar das críticas intrínsecas, já que, para ele, o quadrinho é um espaço de contestação individual.
“A mente considerada normal equilibra precariamente, com mecanismos de repressão, as tendências de fugir da realidade. Quando esse equilíbrio se rompe, o mundo interior do indivíduo aflora. Então esse é o meu mundo interior que eu coloquei aqui. Não tem tanto a ver com a realidade exterior.”
Entre os silêncios que muito diziam na entrevista e o barulho da chuva forte, perguntei a ele o que sente ao concluir um trabalho, e fui surpreendida pela resposta: “Eu sinto vontade de comprar, quando acabei esse último, comprei um celular caro. Sinto que eu mereço porque eu me esforcei”, e rimos. Realmente faz sentido. Contente com seu novo livro, na tarde de estreia também vai expor sua série de pinturas “Bonecos grotescos”, feita com a técnica de aerógrafo. Tanto os livros quanto os quadros vão estar à venda.
“O Aerógrafo”
Lançamento do livro de Régis Cheker. Nesta sexta-feira, 1º de dezembro, às 15h no Cult Art – Centro de Convivência e Cultura Vila Verde (Rua Machado Sobrinho 184 – Altos dos Passos)