Ela veio pelas beiradas, como parceira de palco e projetos de Chico Chico, o filho de Cassia Eller, que saía do casulo em 2016. Um show rápido no Bourbon Street, em São Paulo, rendeu uma aparição relâmpago fora do Rio, mas os holofotes estavam direcionados levemente para seu lado, e Júlia Vargas passou quase despercebida. Ou por descuido da imprensa especializada, que pouco falou em seu nome além das cercanias fluminenses, ou pelo fato de não ser aquele o momento ideal, ela levou mais algum tempo até chegar ao seu terceiro álbum, o segundo de estúdio e o definitivo de alma. Julia Vargas deixa de ser uma aposta a partir de Pop Banana para se tornar real.
Sua força no estúdio vem de uma postura de forte personalidade. Aos 29 anos, ela decidiu assumir a concepção do álbum e dirigi-lo. Escolheu um repertório cheio de critérios e “inventou” uma base harmônica que passasse a ideia do Brasil urbano, moderno e, ao mesmo tempo, de pés no chão. Algo bastante Rio de Janeiro. Já tinha, a essa altura, as bênçãos de Milton Nascimento, Ivan Lins e Ney Matogrosso, que se deixaram arrebatar por um canto inusual e “para fora”, como se via sobretudo na retomada das grandes vozes, na década de 1970.
Júlia vem se formando na estrada, outra característica que sua geração perde com as facilidades das gravação de álbuns. Em 2014, foi convidada para fazer parte do projeto Mar Azul, uma homenagem ao Clube da Esquina. De quebra, saiu em turnê ao lado de Milton Nascimento, na turnê Travessia, pelo interior de Minas Gerais. Outro tributo a influenciar sua voz foi à Cássia Eller, no Rock in Rio de 2015. O que seria seu segundo disco foi Júlia Vargas e os Barnabés, gravado ao vivo no Teatro Municipal de Niterói.
Existe algo nas canções, um trabalho de arranjos, que atinge um ponto de equilíbrio interessante. Seu disco não fica nem hermético, algo que a sede pelas quebradeiras poderia provocar, nem pop no sentido de superficial demais. É música popular brasileira, com a boa notícia de trazer um apuro instrumental e algumas surpresas vocais que não se comemoram todos os dias.
A própria faixa título, Pop Banana, do compositor carioca Claos Mózi, que assina outras duas músicas no disco, vem com uma riqueza de divisões rítmicas na melodia que rompe com lugares comuns. A expressão de Júlia no palco é outro forte. Ela parece fazer pouca força para se jogar nas interpretações e tem uma ampla faixa de atuação vocal. Consegue mudar timbres conforme o personagem que vai interpretar, evitando proceder nas mesmas regiões de sempre ou reproduzir apenas o conforto ao qual poderia se ajustar por todo o disco. Júlia tem sido comemorada sobretudo por essas virtudes. Ainda é uma cantora em construção, mas de uma obra que só falta o acabamento. A base está bem fundada.
Formação
Uma voz sai da terra pisoteada por padrões estabelecidos e timbres reprocessados e desponta como uma ilha no oceano. Júlia Vargas é seu nome. Olhos claros, cabelos loiros, 1,65 metro, 29 anos, nascida em Cabo Frio (RJ), suas vitórias vinham como se a preparassem para algo maior. Ivan Lins abriu as portas de casa presenteando-a com uma música inédita, gravada em 2012. Milton Nascimento a colocou para cantar a seu lado na turnê Travessia e, com ele e o rapper Criolo, nos shows de Linha de Frente. Ney Matogrosso foi para o estúdio dividir vozes na inédita Pedra Dura.
Ainda assim, seriam todos meros padrinhos se um passo maior não fosse dado depois de seu primeiro disco. Júlia Vargas era ainda apenas uma possibilidade.
Pop Banana a torna real. Um álbum de alta produção e arranjos cuidadosos, guiado por um raro canto grande em um mundo de vozes em fio, com brilho e domínio das muitas cantoras que parecem viver ali. A direção musical e a produção são suas. Além de dividir o tango estilizado Pedra Dura com Ney, Pedro Luís canta em Pulmão. Entre suas escolhas estão João Bosco e Aldir Blanc (Mulher), Jorge Mautner e Nelson Jacobina (Samba Jambo) e Tom Zé (Mã). Os novos cariocas são Claos Mózi (que assina três canções), os irmãos de Julia, Ivo Vargas e André Vargas (Pedra Dura), Carlos Posada (Pulmão), Vitor Lobo (Eva Maria, com Mózi) e Marcos Mesmo (A Vida Não É Sopa).
Da bailarina dos pas de deux pelo Teatro Municipal do Rio e pela companhia de Deborah Colker ao lançamento de seu segundo e mais orientador disco solo, com um próximo show marcado para 18 de julho, no Sesc Copacabana, Júlia Vargas construiu sua personalidade musical com rapidez. Ainda não era essa a Júlia de 2012, quando começou a chamar atenção dos círculos de seu meio, descobrindo em seu garimpo, por exemplo, a cantora e compositora paraibana Cátia de França. Memórias de berço indicam que a música veio antes, apesar de sua realização na dança ser quase definitiva. “Minha mãe era regente de coro e usava os filhos de cobaia. Íamos aos corais em que ela trabalhava como uma espécie de coro de reforço. Foi assim que eu aprendi.”
O canto tomou a dianteira pelas mãos do irmão, também intérprete, Ivo Vargas. “Eu comecei a ir aos bares para vê-lo e passei a participar de seus shows. Vieram os convites. Abri um espetáculo do Geraldo Carneiro e acabei entrando em coletivos, como a companhia de Oswaldo Montenegro.” Foi tudo rápido. Segura da própria voz, encarou um teste para entrar no grupo Nó Cego e acabou admitida no ato, desde que seguisse as orientações do músico Rodrigo Garcia. “Ele me disse que eu já estava na banda, mas que deveria pensar seriamente em fazer meu disco próprio.” Foi o que a levou ao primeiro álbum.
Foi também Rodrigo a ponte para que Júlia chegasse a outro ponto importante, as parcerias com o cantor Chico Chico, filho de Cássia Eller. A união rendeu muitos shows e o lançamento de um selo próprio, o Porangareté, que lança Pop Banana em parceria com a Biscoito Fino. Chico Chico foi um parceiro fiel, mas que eclipsava Júlia mesmo à sua revelia. Àquela época, jornalistas de música queriam saber mais sobre o filho recluso de Cássia Eller. As luzes chegavam a Júlia apenas de forma rebatida.
Era o caminho certo tomando forma. Com palcos rodados o suficiente para saber o que queria, a cantora desenhou seu projeto de voo solo e chamou a responsabilidade para o próprio microfone. Concebeu uma base fixa que entendeu como a espinha dorsal de seu disco, com Gabriel Barbosa na bateria, João Bittencourt revezando acordeom e piano e Marcos Luz no baixo. Os outros músicos seriam convidados especiais. Vieram nomes como o trompetista José Arimatéa, o rabequeiro Beto Lemos e o percussionista Marcos Suzano. “Eu buscava referências do Brasil e de sons que ouvia em casa desde sempre.
Minha mãe apresentou os tropicalistas todos e senti a música africana que vinha da família negra de meus pais. Miriam Makeba (cantora sul-africana) se tornou minha diva maior.” Surge então na conversa um nome de passagem, aquele que cantora alguma quer citar sob pena de se ver comparada ou criar falsas expectativas. “Eu cantava as músicas de Elis com meu irmão, que fazia a voz do Milton Nascimento.”
Não há argumento capaz de amparar comparações entre as duas cantoras, por mais que Ivan Lins diga ser Júlia uma das fortes esperanças da boa música brasileira e Milton incensá-la como poucas vezes fez na vida, mas um contexto em comum pode ser mencionado. A música brasileira vivia dias de vozes para dentro quando a gaúcha chegou ao Rio de Janeiro, em 1964. Sua imagem em cena, como se revivesse a então ultrapassada Era do Rádio desde a chegada da bossa nova, causou espanto e escárnio antes da louvação.
O mundo é hoje muito mais pulverizado para se ter apenas uma corrente vigente em qualquer esfera artística, mas a reprodução do canto pequeno, de extensão limitada em poucas oitavas e que opera em zonas de conforto previsíveis, se tornou um forte paradigma.
Grande parte das cantoras deixou, ou jamais experimentou, o ato de se arremessar nas angústias ou nos êxtases da alma que elas mesmas evocam porque aprenderam a cantar assim. O menos é mais, ou o chamado minimalismo, como se valesse para toda interpretação, se tornou regra e pariu uma ou duas gerações de cantos envernizados. É isso o que Júlia consegue quebrar com sua música – mas que comentários como esse em jornais não contaminem sua humildade. “Eu gostei muito do que ouvi de minha mãe. Depois de escutar o disco, ela me disse que eu havia conseguido traduzir todas as vozes que eu havia escutado na vida.”
JÚLIA VARGAS
POP Banana
Porangareté e Biscoito Fino – Preço: R$ 32
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.