“Quando eu era seminarista, fui no regime semiaberto fazer uma visita normal, e o agente me disse que quase todos estavam no banho de sol. Perguntei: ‘Tem alguém na cela ainda?’. Ele afirmou que sim. Então nos dividimos, e eu fui para a galeria. Era um corredor grande, com celas dos lados direito e esquerdo. Estava vazio, mas no fundo, muito escuro, parecia ter alguém e perguntei: ‘Tem alguém aí?’. Uma voz respondeu: ‘Tem sim, quem é?’. Eu falei que era o seminarista, e ele me chamou para dar uma benção. Só tinha ele ali. Quando estava rezando, ele se abriu e me perguntou: ‘Padre, Deus perdoa?’. Eu falei: ‘Claro, meu irmão’. Então ele contou: ‘Eu matei minha esposa. Fiz isso num ato impensado, por ciúme, doença, inconsequência, mas me arrependo todos os dias pelo que fiz. Será que, algum dia, Deus vai me perdoar?’. Meu coração ficou bem pequeno, e eu disse a ele: ‘Deus já te perdoou. A partir do momento que você se arrependeu. Quando a gente se arrepende, Deus perdoa. Ele está aqui do seu lado, te dando força para você cumprir sua pena e sair de cabeça erguida para começar de novo. Não vai ser fácil. Construir sua credibilidade com a família, com os filhos, vai ser um grande desafio, meu filho. Mas você não pode cair. Tem que seguir em frente, com o coração aberto. Deus estará ao seu lado”.
‘Dá-me a parte que me toca’
Na infância, quando frequentava a Paróquia de Santa Luzia, vizinha ao seu Bairro Cruzeiro do Sul, Welington Nascimento de Souza conheceu dois religiosos missionários, o espanhol Padre Armando e o italiano Padre Cláudio Corpetti. “Tinha o modelo desses padres missionários, que vieram de tão longe e tinham um trabalho com as pessoas mais pobres. Eles faziam aquilo sem interesse. Cuidavam das pessoas. Me lembro deles na minha rua, visitando as famílias. Aquele carinho me despertou interesse. Eu tinha o desejo de me casar, ter filhos, viajar em família. Fiquei numa crise muito grande. Abrir mão disso tudo para ficar sozinho? Apesar de a família ser numerosa, todo mundo tem sua própria família, não é mesmo?! O desejo de ser padre foi maior que o desejo de ser pai. Por isso escolhi essa vocação, que é um chamado de Deus”, conta o homem, hoje padre como Armando e Cláudio. “Queria fazer algo diferente, numa pastoral, com um trabalho difícil. Pensava em trabalhar com enfermos, nos hospitais, ou com dependentes químicos. Quando Dom Gil contou sobre a pastoral carcerária, falou satisfeito, mas disse que o Padre José Maria não tinha muitas pessoas para ajudá-lo”, recorda-se o religioso, que naquele momento expressou seu interesse e foi orientado a ter o trabalho nos presídios da região como prioridade em seu processo final de formação. Para não mudar por completo sua rotina, o jovem cedeu suas quartas-feiras de folga para o trabalho na pastoral. “Tomei um pouco de susto com aquela realidade, muito sofrida, que está perto de nós, nos noticiários, nas famílias que conhecemos. Mas uma coisa é ver pelos jornais, outra é presenciar. O próprio sistema, como é construído, humilha as pessoas. O preso está sempre de cabeça para baixo, olhando para o chão e com as mãos para trás, tendo suprimida toda a sua dignidade. A gente olha as celas, e parecem cavernas, principalmente as do Ceresp, apertadas e superlotadas”, lamenta o religioso de 36 anos, ordenado diácono em fevereiro de 2014 e sacerdote em agosto do mesmo ano. “O lugar não serve nem para bichos e recebe homens.”
‘Pai, pequei’
No início da adolescência, Welington soube que não compartilhava da mesma trajetória religiosa dos irmãos. “Sou juiz-forano. Minha mãe nasceu em Caeté, numa fazenda. Meu pai foi criado no Alto Grajaú. Os dois se encontraram quando meus avós maternos se separaram, e minha avó veio com minha mãe aos 12. Com 17, ela conheceu meu pai, se apaixonaram e três anos mais tarde se casaram. Sou o último dos cinco filhos. Na minha família, a tradição católica sempre foi muito vinculada aos meus avós. Todos os meus irmãos foram batizados e crismados. Eu não. Fui batizado adulto, quando já estava no seminário. Ingenuamente ia na missa e comungava, sem saber”, lembra ele, que sempre rodeou a igreja. “Usava muito a biblioteca do Seminário Santo Antônio para fazer os deveres de casa e ler livros. Jogava bola lá também, com os seminaristas. Fazia parte das festas de Santo Antônio. Minha vida antes de entrar para o seminário foi muito intensa. Aproveitei muito. Joguei muita bola, fui da base do Tupi”, conta o flamenguista no Rio e carijó na cidade, que, mesmo aprovado no vestibular em geografia, optou pela vida religiosa. Para trás, deixou o trabalho com o pai marceneiro, o curso técnico em informática e também o emprego num cursinho pré-vestibular. “Tive uma vida de opções. Até namorei, mas nunca conheci família. Meu pai tinha o sonho de que eu me tornasse militar. Até cheguei a ser aprovado num concurso, mas, no exame de saúde, pelo meu dedo do pé ser colado no outro, fui desclassificado. Meu caminho não era aquele”, acredita ele, que, no início do percurso para se tornar padre, aos 25, enfim foi batizado. “A igreja chama de catecumenato, que é o rito de iniciação do adulto, com os três sacramentos numa única celebração. O catecumenato é vivido num período de dois anos, até que, na vigília Pascal, o bispo oferece os sacramentos. No meu caso aconteceu na noite de Natal de 2005”, explica ele, que dez anos depois foi enviado para um missão no Pará. “Fiquei seis meses na igreja de Óbidos, a oito horas de barco de Santarém. Muita pobreza, tudo é o rio, não há estradas boas. Andei muito numa prancha muito precária, com os peixes pulando em cima. Foi interessante conhecer os dialetos, os jeitos, as comidas. Foi enriquecedor”, comenta o sacerdote formado em teologia e filosofia e residente numa suíte na casa paroquial da Catedral.
‘Tudo o que é meu é teu’
Na vida adulta, ao coordenar as atividades da Pastoral Carcerária, após Padre José Maria se transferir para sua natal Rubiataba, em Goiás, Padre Welington compreendeu que “as cadeias demonstram uma falência do estado”. Pergunto-lhe, então, se considera justo que a igreja cumpra tal papel. “Saímos de nossa missão, que é espiritual. A missão da pastoral não é dar cobertor, remédio, pasta de dente, mas anunciar uma pessoa. Mas não há como anunciar Jesus Cristo para alguém que está com fome e sentindo dor. Primeiro é preciso recuperar a dignidade dessas pessoas, para que elas possam ouvir sobre Jesus”, responde o religioso, completando: “Não importa o que essas pessoas fizeram. Na pastoral, não temos a preocupação com o delito, mas com a pessoa. O pecado está sendo respondido, a multa está sendo paga, e é preciso que ele tenha sua humanidade zelada.” O que o sacerdote faz, portanto, corresponde ao aprendizado recebido na rotina com os missionários europeus. Cuida como cuidavam Armando e Cláudio. E como faz Francisco, o papa que lhe serve como norte nos dias, ofertando a versão prática da Parábola do filho pródigo”, que Welington carrega inteiramente na memória. “O Papa Francisco vai muito em presídios. Há pouco tempo ele fez uma visita pastoral à cidade de Milão e pediu para conhecer um grande presídio. A superlotação não é uma realidade apenas brasileira. Os presos de lá, então, tiveram um almoço diferente, e o papa comeu com eles, conversou, brincou, entrou numa cela e descansou. Esse é o Papa Francisco, que anda nas madrugadas pelas ruas levando sopa e cobertores aos mais necessitados. Ele criou banheiros públicos com chuveiros com água quente e toalhas e comida”, divulga o padre juiz-forano, referindo-se à visita ocorrida em 25 de março deste ano e à instalação de abrigos feita no final de 2014. Padre Welington também deu vida a um projeto em sua pastoral, o “Remição pela leitura”, que recolhe títulos para serem usados como benefício previsto na Lei de Execução Penal, que permite a redução de até quatro dias de pena a cada livro lido. “Um desejo que tenho e que está próximo de se tornar realidade é a criação de uma casa de acolhida do preso e de seus familiares, perto do Ceresp, onde teremos um presídio de portas abertas, sem agentes, com o preso fazendo tudo”, acrescenta ele, que também espera arranjar tempo para “jogar bola” com os detentos, um dos pedidos que eles também lhe fazem. “Eles pedem muito. Um dia me marcou muito um deles que, perto das 16h, me chamou. Eu pensei: Ah! Meu Deus. Quero sair, mas essa é minha missão, por isso estou aqui. Então fui até ele. E ele me falou: ‘Padre, quero fazer uma oração para o senhor’. Aquilo me desarmou. Eu perguntei o porquê. E ele me disse: ‘Quero que, na outra semana, o senhor volte de novo. É muito importante a presença de vocês aqui’. Ele, que tem todo o direito de pedir, porque não tem nada, quis oferecer. Ninguém é tão pobre que não possa oferecer e nem tão rico que não possa receber.”