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Corpos negros, presente!

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“É Deca, a gente se faz mulher ‘a ferro e fogo’, é uma força, é na dor que a gente é modelada, é no soluço escondido, é na angústia da quase morte que a gente emerge tonta pra vida”, escreve Conceição Evaristo, no dia 9 de julho de 1982, a sua irmã Maria Angélica Evaristo, a Deca. Escreve com a saudade de uma década da casa da mãe e dos oito irmãos, numa favela de Belo Horizonte. Escreve já normalista da rede municipal de Niterói, forjada no curso que precisou dividir com o trabalho como empregada doméstica. Escreve antes de se tornar professora e pesquisadora, com mestrado e doutorado em letras. Escreve antes de receber o troféu de terceiro lugar na categoria contos do Jabuti de 2015, por “Olhos d’água”, e o Prêmio Faz Diferença na categoria prosa de 2016. Escreve escritora, que sempre foi. Escreve mulher, negra e poesia, que também sempre foi, em carta tirada do baú para ganhar a Ocupação Conceição Evaristo, no suntuoso prédio do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo, a partir da próxima terça, 4.

Escreve também a mãe, dona Joana, em diário exibido na mostra que homenageia a escritora mineira reverenciada na última edição da Medalha Nelson Silva, oferecida pela Câmara Municipal de Juiz de Fora aos protagonistas do movimento de valorização da cultura negra na sociedade brasileira. Escrevem, ainda, outras autoras, incitadas por Conceição a darem vida, na década de 1990, ao projeto “Cartas negras”, de troca de correspondências de mulheres negras. Escreve, portanto, Raízza Prudêncio, jovem juiz-forana que lança, neste domingo, o livro “A história do negro na arte brasileira”, registro da performance e da pesquisa homônimas. Conceição tem 70 anos, vive em Maricá (RJ) e faz literatura. Raízza tem 26, vive e estuda em Juiz de Fora e faz artes visuais. Separadas pela geração, pela linguagem e pela vivência, ambas dizem da mulher negra na arte nacional ao se inscreverem no tempo do hoje. Ao escreverem “Presente!”.

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‘O que as negras devem fazer…’
Foi preciso décadas, títulos e coragem para que Conceição Evaristo se consagrasse. “Cânone das margens”, diz ela, que viu a cena se abrir, ainda que discutivelmente, para artistas como Raízza. “Há uma dificuldade de imaginar que as mulheres negras têm outras competências. Não temos visibilidade enquanto escritoras, produtoras do saber, intelectuais e sujeitos pensantes. É como se só tivéssemos competência para dança, cozinha, rebolado, para sermos boas de cama ou, quando muito, para falarmos da carência material, da água que falta na bica, do pão que falta aos filhos. Pensar em outras possibilidades para as mulheres negras ainda foge do imaginário brasileiro. Pensar nelas com seus dramas de solidão, com competência artística para as letras, ainda é difícil. Mesmo na música é mais difícil consagrar uma maestrina negra, uma bailarina negra. Podem, até, consagrar uma sambista negra, mas bailarina é mais difícil. Dentro do próprio campo da arte tem seus nichos onde as pessoas negras são mais ou menos interditadas. Isso não fica explícito, é preciso um cuidado para ter essa percepção. Tem um poema de Carolina Maria de Jesus que diz: ‘Eu disse: o meu sonho é escrever!/ Responde o branco: ela é louca./ O que as negras devem fazer…/ É ir pro tanque lavar roupa.’. É preciso cuidado pra não nos colocarem no quarto de despejo”, comenta Conceição, referindo-se ao título que lançou escritora surgida na paulista favela do Canindé. “Quem faz o movimento para sairmos do quarto de despejo somos nós, porque a sociedade como um todo não tem esse interesse”, diz Conceição.

 

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O contemporâneo quarto de despejo

“Eu assino Joana Josefina Evaristo Vitorino”, escreveu a lavadeira dona Joana, mãe de Conceição Evaristo, logo após ler “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”, livro que a catadora de lixo Carolina Maria de Jesus lançou em 1950. “Não nasci cercada de livros. Nasci cercada de palavras, da literatura oral. Minha mãe está com 94 anos, e toda a minha trajetória é influenciada por ela, pela luta dela, pela persistência, religiosidade, coragem e generosidade com os filhos. Pela contação de histórias dela também, que sempre contou para a gente, com bonecas, criando personagens, historinhas. Não só minha mãe, mas também minha tia, irmã dela. Elas foram fundamentais na minha possibilidade de estudar. Minha mãe acreditava que pelo estudo eu iria romper com nosso espaço de pobreza e subalternidade”, recorda-se Conceição, que na exposição exibe os cadernos da mãe, bem como documentos seus, vídeos e fotografias.

Alvo de polêmica em palestra no último dia 17, na Academia Carioca de Letras, a defesa do professor e crítico Ivan Proença de que os escritos de Carolina resultam em documento, mas não em literatura, logo rebatido pela poeta e atriz Elisa Lucinda, demonstra, para Conceição, a resistência ainda reinante. “Se lermos com atenção o texto de Carolina, não só ‘Quarto de despejo’, percebemos que ela tinha um projeto literário, sabia o que estava escrevendo, sabia o que queria dizer e o que não queria dizer. Não é somente um documento, porque não está falando só das carências materiais. Ela fala, inclusive, da solidão humana. Ela era uma pessoa só e tinha o desejo de explicitar a solidão humana, com uma competência linguística que se diferencia da de Clarice Lispector, que escrevia no mesmo período. Se Clarice lida com a solidão no texto, Carolina também lida. É preciso ver Carolina como pessoa.”

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“Meu corpo é a minha casa e é essa casa que habito e desenho com meus pares”

Tanto Carolina quanto Conceição apenas levaram para o texto o que transbordava na vida. “Quando escolho meu objeto de pesquisa para o mestrado, para o doutorado, para toda a minha escrita levo minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Não há como separar Conceição Evaristo, cidadã negra na sociedade brasileira, oriunda das classes populares, mãe de Ainá, viúva e professora do Rio de Janeiro, da Conceição Evaristo escritora. Minha inspiração, o objeto de minha atenção é voltado para a minha experiência. As mulheres de classes populares são a minha experiência, são o que me seduz e o que me capacita a ter um olhar. Não significa que tudo o que crio vivi. Afinal, literatura é ficção. No meu livro ‘Becos da memória’, nada do que está escrito é verdade, e nada do que está escrito é mentira. A própria memória é uma ficção, porque lembramos do que queremos lembrar. Memória é um exercício de lembrança e também de esquecimento”, ressalta Conceição.

RG = corpo
“A nossa carteira de identidade”, afirma Conceição, “é nosso corpo negro”. Raízza Prudêncio afirma isso em seu e-book “A história do negro na arte brasileira”, disponível a partir deste domingo em sua página (http://cargocollective.com/RaizzaPrudencio). “Trata-se de um livro-performance. Pesquiso arte negra desde o início da faculdade. Minha performance é o lançamento de um livro de artista, com as fotografias das pessoas que foram ao evento. Também escrevo sobre as referências artísticas negras, numa espécie de guia, e explico o trabalho, a arte performance e a presença do corpo negro. O experimento tentava trazer negros para um ambiente que, geralmente, não é feito para eles”, pontua a jovem estudante do Instituto de Artes e Design da UFJF, que recebeu, como convidados, poucos negros, a maioria de jovens universitários.

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“Sinto-me privilegiada porque faço parte de uma geração que já vê alguns discursos alcançarem visibilidade”, diz. “Moro na periferia, no Bairro Milho Branco, mas sempre tive acesso à cultura. Minha mãe é professora, e meu pai, metalúrgico. Ele desenha, tem uma intelectualidade orgânica e sempre me incentivou a dançar, performar. Quando ele chegava do trabalho, a gente montava um circo dentro de casa e escutava rock. Meu nome é em homenagem à esposa do Mikhail Gorbachev, que assinou a Perestroika”, completa a filha de Sebastião e Ângela, autora de um título que recupera décadas de marginalidade dos artistas visuais negros no país. “Desde a Academia Imperial de Belas Artes há a presença do negro como artista, mas ele é apagado do ensino. Firmino Monteiro, Antônio Rafael Pinto Bandeira, Estevão Silva e Artur Timóteo da Costa são alguns deles. Como era academia, eles não pintavam aleatoriamente, mas seguiam um programa artístico, dentro de diretrizes. Eram pinturas de paisagens e cenas do cotidiano, mas, quando observadas de perto, percebe que já começam a fiar outro lugar. O Artur Timóteo da Costa pinta figuras negras em cenas triviais, mas isso é raro nessa produção”, conta Raízza.
‘Ao mesmo tempo em que minha escrevivência é punho cerrado, vou dizer que é de um brutalismo poético muito grande. Não perco de vista que estou trabalhando com a arte da palavra.’

História (da arte) branca

Na modernidade, Lasar Segall e Cândido Portinari tratam do negro em suas pinturas. O próprio movimento antropofágico pensa o negro mas não o inclui. “Vemos muito isso na cultura brasileira, de artistas e pesquisadores referindo-se ao negro, mas ele mantendo-se apartado da discussão. Fala-se muito em antropofagia da cultura, mas é sempre a partir de um artista branco falando do negro. Desde a década de 1960, temos uma produção negra artística e intelectual de bordas, mas que não é revelada como arte brasileira. No ensino de história a gente tem o Hélio Oiticica, mas não vemos o Abdias Nascimento e o Rubem Valentim com suas pinturas de orixás. Artistas mulheres e negras são ainda mais raras nessa cena”, lamenta Raízza, confirmando ser a ausência da consagração uma “marca de discriminação”. Por isso, é preciso fazer da pena instrumento de batalha. “Faço a arte que quer interferir na vida e deslocar. A questão do corpo, para mim, é importante porque sou muito nietzschiana, e ‘vida como obra de arte’, ‘vida como criação’, ‘vida como potência de si’ sempre fizeram muito sentido para mim. Meu corpo é a minha casa, e é essa casa que habito e desenho com meus pares”, completa Raízza.

Para essa vida que se mistura à obra, Conceição Evaristo deu o nome de “escrevivência”.  “Ao mesmo tempo em que minha escrevivência é punho cerrado, vou dizer que é de um brutalismo poético muito grande. Não perco de vista que estou trabalhando com a arte da palavra. Gosto da experimentação. Quero falar da dor, mas falar da dor com ternura. Quero tratar determinados textos da maneira mais poética possível. Quero falar da morte não pelo espetáculo, mas como denúncia da falta de possibilidade de vida. Quero falar da morte, mas quero falar da resistência milenar dos povos colonizados, e aí penso nos povos indígenas. Quero falar de uma literatura que pode ser punho cerrado, mas tem que ser um literatura de esperança. Nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim pra acordá-los de seus sonhos injustos. Não vamos contar histórias como nossos ancestrais, para fazer dormir os descendentes da prole colonizadora, pelo contrário, é para incomodá-los, fazendo com que despertem”, debate a escritora mineira, partilhando com Raízza da certeza de que ocupar, mais que estar, é ser parte.

“Não é que o branco não possa falar do negro. A questão racial do Brasil não é para os negros resolverem, mas para todos os brasileiros. Mas determinadas experiências o branco só entende a partir de uma perspectiva racional. A perspectiva emocional é mais difícil. Estou me lembrando de Nadime Gordimer, uma escritora branca na África do Sul, que junto da família lutou intensamente contra o apartheid, e receberam várias sanções por isso. Ela fala que se um escritor negro leva para seu texto a experiência como sujeito negro, esse texto se diferencia do texto de um escritor branco”, explica Conceição. “O branco vai ser solidário, ser comprometido, vai lutar contra o preconceito, vai ser um aliado, mas não vai sentir a dor da maneira que eu experimento. Em mim ela bate de forma diferente, tinge o que tenho de mais profundo. No branco atinge o entendimento, compreende que é uma injustiça a discriminação, mas quem vai sentir é o sujeito negro.”

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