O Dia Nacional da História em Quadrinhos, comemorado desde 1984 no dia 30 de janeiro, terá atividades em Juiz de Fora nesta quinta-feira para celebrar a data. Na Biblioteca Municipal Murilo Mendes, no Centro, o armário do projeto “Livro vai e vem” – que incentiva a troca de publicações – continua no Setor Infantojuvenil da biblioteca, com foco na troca de gibis e mangás. No mesmo local, crianças e adolescentes poderão produzir suas próprias HQs, com temática livre e material fornecido pela Murilo Mendes. O horário é das 9h ao meio-dia e das 13h às 17h. Já na Casa de Leitura Delfina Fonseca Lima, no Bairro Benfica, a criação de histórias em quadrinhos teve início semana passada e prossegue até sexta-feira, das 8h às 17h. As duas unidades também receberam até quarta-feira doações de HQs feitas pela população, em uma iniciativa da Funalfa.
As atividades de incentivo à leitura e produção de quadrinhos por parte do Município podem ser consideradas um exemplo de como as histórias em quadrinhos passaram a ser vistas pela sociedade nas últimas décadas. Se antigamente eram algo considerado “para crianças”, com o tempo atingiram um público mais amplo, em especial entre os adultos. Muito disso se deve, obviamente, ao sucessos dos filmes estrelado por super-heróis, com personagens como Homem de Ferro e equipes como os Guardiões da Galáxia se tornando populares mesmo entre quem não lê quadrinhos.
Mas essa mudança de panorama vai além, com um crescimento expressivo de roteiristas e/ou desenhistas que tentam viver do seu ofício. Há desde os artistas conhecidos do mainstream, que desde os anos 1990 trabalham para editoras como Marvel e DC Comics: a lista inclui “desbravadores” como Roger Cruz e Mike Deodato, além da galera que veio na sequência (Ivan Reis, Rafael Albuquerque, Fábio Moon, Gabriel Bá, Rafael Grampá, Bilquis Evely, Gustavo Duarte) e já levou prêmios como o Eisner.
No mercado interno, não faltam artistas independentes e com trabalho de qualidade, que produzem material autoral em formato físico, digital, totalmente independente, por crowdfunding ou por meio de editoras como a Sesi-SP, Balão Editorial e Guará Entretenimento. Eventos como a CCXP, o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) e o Troféu HQ Mix ajudam a dar visibilidade a toda essa gente. O mais difícil, porém, ainda é viver exclusivamente dos quadrinhos para poder pagar os boletos no início do mês.
Escreva e desenhe como uma garota
Sempre visto como um universo masculino, os quadrinhos têm leitoras e artistas mulheres em um número maior do que se imagina, com nomes como Lousie Simonson, Linn Varley, Ann Nocenti, Gail Simone e o da brasileira Bilquis Lively. Dentre as artistas independentes no Brasil, um dos destaques é a quadrinista pernambucana Germana Viana. É autora de “Lizzie Bordello e as Piratas do Espaço”, já na segunda edição; “As empoderadas” (vencedor do troféu HQMix na categoria webquadrinhos); e “O verão do Papa-Angu”. Ela também é coordenadora, editora e uma das autoras de “Gibi de menininha – historietas de terror e putaria” (Vencedor do troféu Angelo Agostini na categoria de melhor lançamento de 2018 e do HQMix na categoria melhor revista mix de 2018), e de “Gibi de menininha – o faroeste é mais embaixo”. A autora participou ainda de diversas coletâneas, como “SPAM”, “Amor em quadrinhos”, “Café espacial” e “Marcatti 40”.
Germana começou no mundo dos quadrinhos há cerca de 15 anos, trabalhando com edição, balonamento, lettering e agenciamento de artistas brasileiros para o mercado norte-americano com Joe Prado. A vida como roteirista e desenhista teve início em 2013, ao conhecer George Pérez (“Crise nas Infinitas Terras”) no FIQ, em Belo Horizonte. “Ele me questionou por que, com um traço daqueles, eu estava fora do mercado – rapaz, marido me levou para um canto porque viu que eu ia começar a chorar. Saí de lá decidida a trabalhar com quadrinhos e com o convite do Franco de Rosa para participar da coletânea ‘As Periquitas’ e não parei! Acho que nunca fui tão feliz fazendo algo como quadrinhos.”
Depois de tantos anos dominado pelos quadrinhos de super-heróis, de personagens da Disney e da Truma da Mônica, entre outros, Germana acredita que há espaço para a produção independente, mas que trata-se, ainda, de um mercado em construção. “Ele ainda não acompanha a qualidade dos quadrinhos indies e de small press, mas muito já melhorou por conta de iniciativas como a Graphic MSP (com personagens da Turma da Mônica), que colocou em destaque alguns quadrinistas indies e criou leitores com fome de procurar coisas novas; a CCXP, que ao tornar o Artists’Alley o coração do evento ajudou a criar novos leitores; o FIQ, que é visitado tanto por leitores e pessoas que não conheciam o cenário; o financiamento coletivo, que possibilita que quadrinhos sejam publicados mesmo sem uma editora – e num momento em que temos um Governo que mostra descaso e a intenção de sucatear a cultura; e o site Lady’s Comics, que nos fez enxergar que não estávamos sozinhas e gerou uma rede de apoio entre as artistas, deixando claro que tem muita mulher produzindo, sim!”
Sobre a presença feminina no mundo dos quadrinhos, Germana Viana argumenta que elas sempre estiverem presentes, o que faltava era interesse da imprensa especializada – algo que demorou a acontecer, segundo ela. “Um exemplo disso foi uma visita a São Paulo feita pela quadrinista e pesquisadora Trina Robbins em 2015. Ela é tão importante para os quadrinhos quanto Robert Crumb, mas me pergunte se teve a mesma divulgação que ele teria… spoiler: não!”, diz a artista.
“Mas a situação melhorou muito, ainda assim”, acredita Germana. “O site Lady´s Comics, além de mapear parte das quadrinistas brasileiras e nos unir, ainda gerou outros sites de informação e análise de cultura pop como o Nebulla, os Garotas Geek, o Mina de HQ, Delirium Nerd, Preta Nerd e Burning Hell, entre outros. E arranjamos alguns aliados na imprensa especializada, podcasts, blogs; isso tudo ajuda a recebermos a mesma atenção. Porém, enquanto uma fatia já está recebendo destaque, nossas manas negras e trans ainda não têm o alcance que temos, e se uma das frentes não tem, nenhuma tem de fato… mas chegaremos lá!”
‘Quanto mais diferente, autoral e consistente, melhor’
Um veterano do meio quadrinístico, o mineiro Marcelo Lelis está no batente há mais de três décadas e coleciona prêmios como o HQMIX de 2019 na categoria desenhista nacional, por conta de “Anuí”. Ele, porém, não se preocupa tanto com os troféus. “Outro dia li uma frase curta, acho que de um francês, que ‘concurso é para cavalos’ (risos), algo assim. Acho superlegais os prêmios, são importantes, ter no currículo ajuda, é um reconhecimento. Mas não é definitivo: o trabalho é diário, nem sempre também quer dizer que você é o melhor. Para mim, persistir no foco, direcionar o trabalho para uma coisa bem autêntica, é mais importante.”
Trabalho – e trabalho constante, diversificado -, aliás, pode definir a trajetória do artista, que começou como jornalista policial em sua terra natal, Montes Claros, por volta de 1985. Ao ver que não era a sua praia, conseguiu ser transferido para o recém-criado departamento de criação de anúncios e charges. Mais para frente, em 1992, já em Belo Horizonte, descobriu que poderia trabalhar profissionalmente como ilustrador ao ser contratado pelo “Estado de Minas”. Desde então, ele tem trabalhado com quadrinhos – principalmente para o mercado europeu -, escritor e ilustrador de seus próprios livros infantis, além de ilustrar trabalhos de outros escritores do gênero.
“Não sei como as pessoas sobrevivem fazendo quadrinhos no Brasil, acho que é impossível. No meu caso, trabalho em um jornal como ilustrador com carteira assinada, tenho essas outras ocupações. Recentemente fiz um quadrinho para uma editora aqui de Belo Horizonte, mas não vivo de quadrinhos, é só mais uma forma de renda. Para o que eles pagam é impossível viver disso, ainda mais com família”, afirma. “Atualmente tenho um novo contrato, de um ano, com uma editora francesa. Vou produzir um livro, receber os direitos autorais adiantados. No Brasil não tenho essa expectativa, pois ninguém jamais vai me chamar para fazer um livro nesse esquema.”
Marcelo Lelis diz não acompanhar o mercado brasileiro, mas está ciente que existe uma produção independente. Ele mesmo publicou “Anuí”, inicialmente, por meio do crowdfunding antes da Sesi-SP Editora adquirir os direitos para publicar uma edição do trabalho. “A dificuldade de publicar existe em todo o canto. Ficou fácil de divulgar seu trabalho pelas redes sociais, mas por outro lado há um excesso de propaganda, que às vezes faz a pessoa passar batido. É difícil se destacar num meio tão cheio de alternativas. Mesmo na Europa, a expectativa hoje é bem baixa, a não ser para os autores de livros como ‘Asterix’. Nos anos 80 havia uma expectativa de venda absurda, pois todo mundo comprava, exportava, o autor podia viver só disso, não eram tantas opções. Na França, por exemplo, eram lançados cerca de 500 álbuns por ano nos anos 80, hoje são cerca de 5,5 mil.”
Por esse motivo, Marcelo Lelis tem um conselho a dar aos artistas em busca de espaço. “É preciso fazer um trabalho diferente e ficar fora dessa linha mais comum de temáticas. Para mim foi um pouco mais fácil, porque antigamente não havia essa concorrência toda, até como ilustrador mesmo. Comecei numa época em que não havia computador, por exemplo. O importante é ter uma linguagem pessoal para que sobressaia; quanto mais diferente, autoral e consistente, melhor.”
Mercado de olho
Viver exclusivamente dos quadrinhos pode ser difícil, mas o mercado editorial tem ficado de olho também na produção nacional, ainda que as HQs de super-heróis sejam o gênero mais popular. Um exemplo é a Balão Editorial, fundada há dez anos por Guilherme Kroll, Flávia Yacubian e Natália Tudrey e que desde então já publicou 30 títulos de quadrinhos – quase metade das 70 publicações da editora, quando junto da literatura e livros acadêmicos.
“A Balão Editorial surgiu quando estávamos na faculdade; minhas sócias e eu somos formados em comunicação social pela USP com habilitação em editoração. Nós começamos a conversar sobre a ideia de abrir uma editora. Quando nos formamos, trabalhamos um tempo no mercado até montarmos a empresa , que saiu do papel com a publicação de ‘Hector & Afonso: os passarinhos’, do Estevão Ribeiro”, conta Guilherme.
Durante esse período, a editora venceu o Troféu HQMix em quatro ocasiões e o Jabuti em uma, na categoria ilustração, com “Lobisomem sem barba”, de Wagner Willian. “Além disso, um livro nosso, ‘Hell no! – meu pai é o Diabo’, levou o prêmio Cubo de Ouro”, conta Guilherme, que destaca entre as HQs recentes a própria “Hell no!” e também “Semilunar” e “Clean break”. Sobre a produção independente de HQs brasileiras, ele tem uma visão positiva. “Acho que é uma produção muito grande, e tem crescido ano após ano. É muito legal que muitas vozes diferentes venham conseguindo se expressar por meio das HQs.”
Quanto à primeira década de atividades da Balão Editorial, Guilherme Kroll diz que foi um período muito difícil, ainda mais levando-se em consideração todos os desafios econômicos dos últimos anos, além da crise no setor editorial. “Mas a gente faz isso porque ama, não pelas facilidades. Sempre fomos extremamente comedidos nos nossos investimentos e não demos muitos tiros errados. Isso nos ajudou a nos manter vivos por tanto tempo”, afirma, acrescentando que o objetivo, claro, é não parar. “Queremos publicar mais, mais gente diversa, variar nossas ideias. Temos planos de lançar muitos quadrinhos e livros em 2020, depende do que vamos conseguir viabilizar. O jeito de se manter vivo é não fazer nenhuma loucura. Tudo indica que continuará a ser difícil, se não pior.”
Colocando no papel
Aos poucos, questões como preços mais em conta, tecnologia, investimento de editoras, crowdfunding foram permitindo uma melhoria na qualidade gráfica dos quadrinhos. Em Juiz de Fora, a Gráfica Juizforana passou a rodar quadrinhos há cerca de 15 anos, e em 2019 foram impressas mais de 176 mil HQs de 106 produções encomendadas. “Cada ano que passa sempre existe um crescimento, mas o que mais me chama a atenção é o volume de mulheres crescente neste mercado”, diz o diretor comercial Farlei Soares.
Segundo Farlei, o novo nicho foi descoberto quando um amigo apresentou um quadrinista de São Paulo – que na época morava em Três Rios – e precisava da indicação de uma gráfica. “Conseguimos fechar o primeiro trabalho com ele. Chegando a São Paulo com as revistas em mãos, vários amigos dele gostaram da qualidade do trabalho da Juizforana, e aí foi o ponto de partida desta história”, conta o empresário, que hoje imprime quadrinhos de todo o território nacional. “Só não tivemos pedidos, ainda, do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima e Tocantins.”