Há quem ouça música como quem devora aquele café da manhã apressado: é para encher a barriga, e nada mais. Mas há quem ouça música de acordo com o seu estado de espírito, para conseguir inspiração, se concentrar, deixar o tempo passar, curtir o momento ou servir de trilha sonora para mil coisas: sexo, festa, churrasco, fazer o bebê dormir, ler. E viajar. Seja ao volante, no banco do carona, no trem, metrô, avião, navio, ônibus, a música pode ser a melhor companhia enquanto vemos a paisagem passar – ok, menos no metrô. E é para quem faz da boa música a sua companheira de viagem que a Alles Club lança nesta quinta-feira (29) “Décollage”, álbum de estreia do quinteto juiz-forano que chega ao mundo com as graças da Pug Records e audição por meio do Spotify.
Um dos integrantes da Alles Club, Mr. Lopes (os outros são Fred Mendes; Nina Hübscher; Ruan Lustosa, do Basement Tracks; e Pedro Baptista – ou Pedro Baapz) assina a produção do disco e conta que a banda deve disponibilizar em breve, por meio da Pug Records, CDs exclusivos para venda nos próximos eventos em que o grupo vai se apresentar. “Sonhamos em conseguir algum recurso para prensá-lo em vinil, mas ainda temos que trabalhar nessa ideia”, diz.
Por enquanto, entretanto, quem quiser ouvir a Alles Club fora do serviço de streaming pode aproveitar o dia 9 de dezembro, quando a banda se apresenta no evento “Jungle Bells”, no Museu Ferroviário, com outras três bandas e mercado de artistas locais e outras atrações, para promover o lançamento oficial de “Décollage”, que será tocado na íntegra e na ordem. “Pretendemos criar ali a experiência do disco com as projeções do Márcio Jorge (Maquinaria)”, antecipa. “Aprendemos que temos que mostrar o show para as pessoas. Essa experiência presencial é muito poderosa e continua sendo a melhor forma de comunicação entre artista e público.”
Da Suíça ao Brasil, passando por Portugal
Trabalho que sucede o EP “1999”, lançado ano passado, “Décollage” foi concebido com a ideia de narrar uma viagem nas seis longas músicas que compõem o disco, inspirado pelo shoegaze do Slowdive e My Bloody Valentine, além do post rock de Mogwai, Sigur Rós, Explosions In The Sky e outros nomes que enchem de alegria (ou seria melancolia) os corações da turma indie, como Sonic Youth, Radiohead, War On Drugs e Yo La Tengo. O próprio processo de gravação do álbum é uma jornada internacional, passando pela Suíça e Portugal até chegar ao Brasil.
“O álbum começou a ser concebido e gravado quando ainda morava em Berna (Suíça). Eu já tinha até gravado algumas baterias lá, mas elas foram todas refeitas – e muito melhor! – pelo Fred na minha casa mesmo (o Estúdio Graminha). Temos um estúdio no mezanino, onde a acústica é incrível para a bateria. Lá gravamos quase tudo. Aprendemos muito recentemente sobre gravação, principalmente de bateria. E é uma liberdade maravilhosa conseguir fazer esse processo nós mesmos.”
“As músicas refletem também um momento da banda em que eu compunha e produzia de maneira mais autônoma”, continua. “O André Medeiros (Top Surprise) foi uma peça fundamental agora na reta final para passar um pente fino na produção e fez a mixagem e masterização do disco, que deu um grande salto nas mãos dele. Hoje o Ruan Lustosa e o Pedro Baapz têm composto mais, e eles tendem a liderar a produção das músicas deles, mas isso só vamos ver mais claramente nos próximos trabalhos.”
Se a produção ficou a cargo apenas de Mr. Lopes, a composição das músicas teve a participação de parceiros, exceção feita a “Quanto tempo”, de Alex Martoni, da época em que os dois integravam a duplodeck. Outra questão em que os amigos deram aquela força foi quanto às letras. “Eu não sei escrever nada além de textos científicos e sinto que não tenho muito a dizer com palavras – e até por isso quero cada vez mais fazer música instrumental. Sempre peço amigos letristas para escreverem. Nesse caso a Isabel Oliveira (Flopsy Franny, um talento escondido aqui de Juiz de Fora) e o Pedro Bustamante (d’Obanco) assinam as outras letras.”
Por conta disso, ele destaca como se deu o processo de criação de “Canção da volta”, que encerra o álbum. “Foi muito curioso. Eu pedi ao Pedro Bustamante uma letra alternativa para ‘Quanto tempo’ e mandei a música, mas esqueci de mandar a melodia da voz, a partir da qual deveria escrever a letra. Ele me mandou uma trilha de voz com a nova letra com uma melodia completamente diferente da original (essa que temos no disco). Eu peguei essa trilha de voz e compus a harmonia do que hoje é Canção da Volta. Foi interessante fazer esse caminho inverso.”
No geral, Mr. Lopes conta que o processo de composição veio antes do estúdio, e que não houve mudanças profundas no resultado final por já terem um conceito estabelecido para o trabalho. Mesmo no caso de “Quanto tempo”, originalmente mais acústica, permaneceu com estrutura parecida após a introdução de todas as guitarras que podem ser ouvidas. “O que eu fiz foi deixar mais tempo para as partes instrumentais, o que a tornou mais longa que a original. Quando a gente as toca ao vivo, acabamos por trazer novas ideias, mas ainda temos composto mais individualmente e menos coletivamente”, explica.
Partidas e retornos
Como resultado, “Décollage” é uma longa, porém nunca cansativa, viagem sonora com vocais etéreos (a cargo de Nina Hübscher, Isabel Oliveira e a escritora Maria Bitarello) e camadas e mais camadas de guitarras, com títulos que se identificam com o conceito do álbum, num verdadeiro ciclo de partidas e retornos. “(As músicas tratam) desde a partida com o sentimento de entusiasmo e antecipação da chegada ao destino (‘Décollage’, que narra literalmente um voo), os encontros e reencontros que valem a pena a espera (‘Quanto tempo’), a montanha-russa de lidar com o desconhecido (‘Libélula’), o entusiasmo com o novo (‘Voando’), a melancolia e saudade que batem quando estamos longe de casa (‘Madrugada’), até finalmente o retorno para a casa, onde toda a jornada parece fazer mais sentido (‘Canção da volta’, onde se ouve a questão: ‘A saudade volta comigo ou será que fica lá?’)”, filosofa Mr. Lopes.
A própria Maria Bitarello, em um texto sobre o álbum, definiu: “Entre ‘Décollage’ e ‘Canção da volta’, temos a jornada: seis faixas e uma travessia. (…) Como o olfato que pode nos remeter a uma sensação precisa da infância, a música do Alles Club nos conecta à linha no centro da estrada, ao som ritmado do trem sobre os trilhos, ao vácuo de uma espaçonave, ao aconchego sacolejante do ônibus noturno. Nos liga, à jato, ao espaço sem tempo ou ao tempo sem espaço, possível sempre e apenas numa viagem. O percurso é só presente; tudo é possibilidade.”
Ouça “Décollage”: